O ANJO DA CASA: UMA CASTRAÇÃO FEMININA

 

 

CERES FERREIRA CARNEIRO

 

“... Descobri que ... Precisava travar uma batalha com um determinado fantasma. e o fantasma era uma mulher, e quando cheguei a conhecê-la melhor, passei a chamá-la pelo nome da heroína de um famoso poema, "o anjo na casa" ... Ela era intensamente simpática. Maravilhosamente encantadora. Totalmente abnegada. Ela se distinguia nas difíceis tarefas da vida em família. Se havia galinha, ela ficava com o pé, se havia uma corrente de ar, sentava-se bem ali. Em suma, sua constituição era tal, que ela nunca tinha um pensamento ou desejos próprios, preferindo antes apoiar os pensamentos e desejos dos outros. Acima de tudo, ela era, é desnecessário dizer pura ... E quando me punha a escrever, deparava-me com ela logo nas minhas primeiras palavras. a sombra de suas asas espalhava-se sobre a minha página; eu ouvia o farfalhar da sua saia no quarto ... Ela se aproximava furtivamente pelas minhas costas e sussurrava ... Seja simpática; seja delicada; faça elogios; engane; lance mão de todas as artes e ardis do seu sexo. Nunca permita que alguém pense que você tem um pensamento próprio. Sobretudo, seja pura. E agia como se estivesse guiando a minha caneta. Relato agora a única ação que me levou ter um apreço por mim mesma ... Voltei-me para ela e a agarrei pela garganta. Apertei com toda minha força, até matá-la. Minha defesa, caso fosse levada a um tribunal, seria a de que agi em defesa própria. Se eu não a matasse, ela me mataria.” (Virgínia Woolf)

 

            Lendo ensaios de Virgínia Woolf, despertei para uma questão que há muito me angustia: por que os homens desde sempre se destacaram no mundo das artes? Por que não há equivalência quantitativa entre ambos os sexos nas mais diversas manifestações artísticas? Abordemos dois pontos de vista para iniciar nossa análise: um, da própria Virgínia, o outro de seu “adversário ideológico”, Desmond MacCarthy. Pontos de vista, estes, que na opinião de W. L. Courtney (outro opositor de Virgínia) “são tão diferentes que é difícil um entender o outro” [1]. O de Virgínia justifica a inexpressividade no campo das artes como fruto da falta de acesso à educação e, sobretudo, à liberdade de experimentar; MacCarthy, a uma inferioridade intelectual, atribuição dada à mulher, aliás, peculiar ao longo da História.

            Não pretendo, portanto, levar esta discussão para fora do campo das artes para não cair no lugar comum da re-conhecida submissão, ou subjugação feminina em detrimento do pai, do marido, do dono, da quase irrelevância de sua presença na política, na ciência, no mercado de trabalho ... reminiscências de um passado longínquo. A arte, com suas singularidades, nos permitirá avaliar a mulher sob uma outra face, para além dos argumentos expostos por Woolf (pelo menos neste primeiro momento) e MacCarthy, justamente, porque a arte não tem um caráter meramente social, mas, sobretudo, intuitivo, inconsciente, espontâneo e natural; ela nos conduz para além das fronteiras morais, rompe barreiras já estabelecidas.

            Não ousaria, aqui, definir arte, mesmo porque duvido da existência de uma completa ou satisfatória, mas gostaria de restringir o campo de abrangência de sua percepção. Cito, para tanto, o filósofo Clive Bell[2] quando diz não haver uma característica comum a todas as obras de arte, mas que podemos identificá-la apenas por intermédio de um tipo de emoção peculiar, a que chama emoção estética, que elas, e só elas, provocam em nós. Podemos entender arte, então, como uma representação estética dos sentimentos e de reflexões, melhor, vejamos a arte como uma transformação da realidade em fantasia, não como uma representação ou apresentação dela, porque só entendendo esta capacidade do autor de fantasiar, ou sonhar é que talvez justifiquemos uma facilidade maior do homem em fazer arte.

            Esta restrição ainda é insuficiente, pois, além desta característica inerente a toda produção dita artística quero abordar apenas as manifestações mais clássicas como a literatura, a plástica e a música, não desmerecendo as outras representações e, sim buscando limitar o foco de nossa atenção.

            Analisemos, portanto, a manifestação artística em sua essência para depois relacioná-la ao gênero de seus representantes, sem nos desviarmos do fato de que a arte é transcendental ao gênero, enquanto ação (ou reação) unicamente humana. Ao lembrarmos a biografia de qualquer artista, seja no campo da literatura, da música, da plástica, temos a impressão de que, no início do processo criativo, há o rompimento da consciência, da dita sensatez rumo à loucura, ao prazer, ao devaneio, à ilusão, ao desconhecido, é o transgredir o mesmo, o padrão, o convencional, é uma ação descontrolada porque emerge em direção a um prazer incomensurável, é a busca da realização puramente emocional e afetiva. O artista se despe de pré-conceitos e perde o medo, transpondo quaisquer obstáculos. Exemplefiquemos: Sade, na ânsia de escrever seus textos e diante da impossibilidade de fazê-lo, recorre as fezes e ao próprio sangue para manter sua arte viva; Aleijadinho, apesar da extrema limitação física e da falta de alternativas da época, não deixa de talhar suas esculturas; mulheres como Frida Khalo, com sérios problemas de coluna e fortes abalos psicológicos, continuou fazendo sua arte, e como Chiquinha Gonzaga que, apesar da criação castradora e do casamento igualmente repressor, continuou compondo suas músicas. Seria só impressão ou é real o caráter transgressor da arte ? Penso que o artista tem seu ID e ego sobrepostos ao superego. As normas sociais tornam-se menores, prontas para serem estilhaçadas em prol da manifestação artística, do surgimento do ser criador e criativo.

            Ora, se este encontro do artista com sua obra é irracional, é obsessivo, é inevitável, é involuntário, por que a grande maioria das mulheres, ainda assim, ao longo dos séculos, não conseguiram se firmar enquanto estrelas de igual proporção no mundo das artes ? Inferioridade intelectual ? Esta teoria chega a ser risível e, ao mesmo tempo, dramática se a considerarmos como um quase lema até meados do século XX. Falta de liberdade, de formação acadêmica ? Também, mas não apenas isso, se assim fosse muitas delas teriam passado pela vida anonimamente. Ou por que as mulheres “têm uma paixão por detalhes que conflita com a proporção artística apropriada de suas obras[3] ? Vejo na opinião de Courtney mais uma revelação da vaidade masculina e do receio das potencialidades femininas latentes. Por que então ?

            Virgínia, ao discutir com seu desafeto “Falcão Afável” [4], via resenhas da revista New Statesman em 1929, enveredava-se pelos caminhos da crença na existência, sim, de expoentes femininos nas artes que igualavam-se qualitativamente aos homens desde 610 a.c., citando Safo como exemplo. Mas não é ali que Virgínia retém a força, a grandeza, a perspicácia de seu argumento: os homens continuam se destacando no mundo das artes, e isto é inegável. Ao enveredar por este caminho, percebo uma fragilidade atípica no seu discurso, revelada no afã de provar, a qualquer preço, que a mulher é capaz sim, contrapondo os dados estatísticos que apontam para um outro diagnóstico. Isabel Allende, décadas depois, em conversa com Maria Velho da Costa [5] ratifica: “A verdade é que o feminino continua a diminuir. Ou seja, na cultura, neste caso, na escrita, o que aparece como parâmetro é a escrita masculina. Para se ser uma ‘boa escritora’, há que tentar ser igual a um ‘bom escritor’.

            Partindo do pressuposto de que as mulheres tinham a obrigação natural de manutenção da espécie enquanto mães, “amamentadoras” e, portanto, aos homens cabia a produção, não só pelo suporte que esta tarefa implica, mas porque necessitava ocupar um papel de igual relevância. O homem, desde quando passou a exercer seus afazeres do outro lado das paredes das cavernas, convive com outros “mundos”, amplia suas relações, “navega”, apossa-se do sonho (por isso insisto em tratar a arte como transformação da realidade em fantasia); a mulher, em contrapartida, quando assumiu os afazeres no interior das cavernas, limita suas ações, assume as responsabilidades essenciais de manutenção da família, o real apossa-se dela.

 

...“A gravidez, o parto, a menstruação diminuíam sua capacidade de trabalho e condenavam-nas a longos períodos de impotência. Para se defender contra os inimigos, para assegurar sua manutenção e a da prole, elas necessitavam da proteção dos guerreiros, e do produto da caça e da pesca a que se dedicavam os homens. (1986: p. 80 )

 

            O problema não está em não fazer, mas no fazer pouco. A mulher cria pouco sua própria obra. Virgínia nos aponta uma outra possibilidade de entendimento, e neste ponto concentra-se, ao meu ver, a maestria de seus ditos e interditos, a beleza e magnitude de seu discurso, o seu poder de convencimento, amparado na franqueza e na espontaneidade, ao falar de seu Anjo da Casa. As paredes são os limites concretos que vão impedir o poder criativo das mulheres e incentivar a manifestação constante do anjo da casa. Enquanto os homens estão livres para sonhar, as mulheres presas a uma realidade doméstica repleta de responsabilidades intransferíveis e permanentes.

            Virgínia denomina de Anjo da Casa o fantasma, o medo que toda mulher carrega (carregou muitíssimo mais) de se libertar; é o reconhecimento do perigo da liberdade. Estes fantasmas se constituem no inconsciente a partir da formatação feminina de ser subserviente, incapaz, sem inteligência ... Como criar se os pensamentos da mulher são presos a um invólucro constituído de pré-conceitos ? Este anjo (ou demônio) é assustador, sobretudo porque age sorrateiramente, é disfarçado de boa conselheira: vocês “devem encantar, conciliar, até mentir, para ser direita”, agradar e agradar, custe o que custar” (1996, p. 45). O fato é que enquanto este “anjo” viver é impossível para a mulher fazer arte, pois não se transgride, não se inventa com vozes dizendo “não faça” ou “é proibido” ou “não é esta a sua função”.

            Considerando a teoria marxista da legitimidade de toda função social ser galgada nos meios de produção e nas lutas de classe, os homens acabam por exclusão obtendo a “fatia” mais generosa desta mutação histórica, pois se o status é proveniente do resultado do trabalho ou da geração de capital, a mulher tem uma ocupação plena no cuidado com a procriação e com o domicílio, está em posição inferior às atividades masculinas, pois a sua não gera capital. Diante da sua aparente inércia, exigida pelos cuidados familiares e não remunerados ela passa a ser a “sombra” da figura masculina que independe da qualidade dos serviços, mas do valor financeiro atribuído a ele. A mulher não é incapaz de criar, mas de vender o seu produto, ou pelo menos de divulgá-lo. O fato é que sair das cavernas garantiu aos homens benefícios imprevisíveis.

 

A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se proprietário da mulher. Nisso consiste “a grande derrota histórica do sexo feminino”. (ibdem, p.90)

 

            Virgínia disse que demoraria muito tempo para que as mulheres escrevessem livros sem terem que matar um fantasma. De fato, ainda hoje, continuamos matando fantasmas, intermináveis fantasmas, mutáveis fantasmas que como os vírus se camuflam para permanecerem vivos a cada nova ameaça. Este fantasma não permite à mulher se ver como alguém capaz de produzir e criar, mas apenas de consumir e exibir aquilo que os homens criaram. Talvez por isso nas artes cênicas as mulheres sempre se destacaram, marcando presença enquanto intérpretes das obras dos seus algozes: são cantoras, atrizes, bailarinas. Têm competência para interpretar e não para criar ? Não. Aventurar-se e decidir pertence ao âmbito masculino; a complacência é o destino das mulheres.

            O Anjo da Casa de Virgínia é a abstração da insuportável realidade a qual toda mulher é exposta: o de ser necessária, de mascarar seus ímpetos, de ser doméstica, de ser objeto do desejo masculino, de ser ausente, de fêmea-padrão. Mas ao assassinar este fantasma, as mulheres se tornam prontas para criarem, muito mais, prontas para decidirem, para serem luz e não sombra, para assumirem a luta incansável de se ser a mulher que se quer ser. Afirmações, citadas por Simone de Beauvoir em seu “Segundo Sexo”, ilustram o tratamento dispensado ás mulheres ao longo da história: “A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”, e “devemos considerar o caráter das mulheres como algo que sofre de certa deficiência natural.” (Aristóteles) “a mulher é um homem incompleto, um ser ocasional” (Santo Tomás); “A mulher, o ser relativo ...”, diz Michelet; “O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem” (Benda); “a mulher é um animal que não é nem firme nem estável” (Santo Agostinho). (Ibdem pgs.18 e 21)

            Façamos uma análise epistemológica do termo “anjo” utilizado por Woolf, tendo como referencial a bíblia: os anjos são assexuados e, portanto, não conotam uma parcialidade. Ao chamar “aquela mulher” de anjo suponho tal escolha ao fato de utilizar uma denominação neutra para uma personagem neutra e, não, feminina. O fato é que independe o sexo do “seu fantasma”, mas a sua essência, sua capacidade de manipulação. Os diversos obstáculos aos atos femininos não provém de homens ou mulheres, justamente porque a conduta de um ou de outro, ou o que é permitido a um ou a outro, não é uma conseqüência social, mas natural. Homens e mulheres são naturalmente diferentes, por conseguinte, socialmente diferentes e, em decorrência disto, assumiram papéis sociais historicamente distintos. Ao explicarmos as castrações as quais as mulheres vêm se sujeitando como sendo primeiramente naturais, o anjo da casa passa a ser uma mera representação das limitações impostas às mulheres por serem procriadoras e por terem vivido dentro da caverna (mencionada anteriormente).

 

“A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana. (...) “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.” (Idem, pgs. 18 e 323)

 

            Atualmente, vivemos em um mundo que valoriza o conhecimento, as relações interpessoais, o ser humano é o alvo e a origem, é a partir dele que se produz. Portanto, as mulheres, em decorrência da sensibilidade estar em voga e não unicamente a racionalidade, passam a ocupar um papel social até então anômalo. Esta mudança de referencial pode ser decisiva para os rumos sociais da humanidade. O espaço para o reconhecimento da sua criação surge no momento em que, milhares de anos após, o seu potencial possa ser observado não como secundário, mas como o ato propulsor da própria criação. Ela é capaz não só de procriar, criar, mas também de produzir, de acumular funções com categoria, o que lhe permite atribuições peculiares de sensibilidade e racionalidade.

            O anjo da casa está prestes a ruir, pois ele passa a ser investigado, argumentado, questionado. A presença dele não é mais aceita com passividade, mas como um cerceador inconveniente e antigo demais, com ínfimas possibilidade de permanência. Não podemos desprezar que em algumas sociedades ocidentais (ou pequenos núcleos dela), as próprias mulheres têm medo de matar o anjo, o suposto inimigo se tornou amigo, a convivência tão antiga fez com que algumas preferissem manter sua condição unicamente maternal, doméstica. Acomodação. Se foi feito sempre assim, mudar para quê ? Elas incorporaram este fantasma, os arquétipos da fragilidade, da candura, da futilidade, o que as impedem de romper com o “anjo” que passa a representar este querer feminino. Afinal, hoje, muitos homens já demonstram disposição para aceitar a mulher como ser capaz e criativo, não podendo mais serem responsáveis por tal conduta.

            Talvez, ao exterminar definitivamente o anjo da casa, a mulher, ao se perceber livre, prefira assumir uma independência mais ampla, se julgue onipotente, optando por não aprofundar as relações com o sexo oposto e se desvencilhando das já existentes. No casamento, como em qualquer relação, há um movimento de troca: “_ Eu te sustento, você cuida do lar.” No momento em que a mulher passa a se manter financeiramente e continua sendo a procriadora, a troca deixa de existir e, tanto o homem pode ter a sensação de impotência como a mulher de onipotência e, assim, as relações conjugais tornam-se ameaçadas.

            A ruptura de um acordo tácito pré estabelecido tende a proporcionar a mulher uma escalada ao mundo artístico. Ao se desvencilhar do fantasma, ela reconhece seu potencial criativo e passa a manifestá-lo. A morte do Anjo da Casa e, por conseqüência, o nascimento da mulher artista nos permite refletir sobre uma possível alteração das características de nossa sociedade, sem a predominância intelectual do sexo masculino e, quiçá, com esta predominância passando a ser feminina.

 

Notas

 

[1] Retirado da resenha de W. L. Courtney The Femine Note in Fiction.

[2] Extraído da resenha do livro Filosofia das Artes: Introdução à estética.

[3] W. L Courtney na resenha Um Toque Feminino na Ficção.

[4] Pseudônima de Desmond MacCarthy.

[5] Retirado do trabalho de Maria Ivo da Cruz.

 

BIBLIOGRAFIA

 

1. Livros

 

BEAUVOIR, Simone. O SEGUNDO SEXO. São Paulo, Círculo do livro, 1986.

WOOLF, Virginia. VIRGINIA WOOLF. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

 

2. Documentos e Dados da Internet

 

ALMEIDA, Aires (2002) Resenha do livro Filosofia das Artes: Introdução à Estética. Citações a documentos eletrônicos www.criticanarede.com")

CRUZ, Maria Ivo da, e outros. (2002) Citações e referências a documentos eletrônicos http:www.prof2000.pt:9999/users/social/socialização htm.