ARTEFATO VAZIO: A MÁSCARA

 

 

SANDRA HAHN

DEPART. DE LETRAS - UFMGS

 

CASTELLO, José. INVENTÁRIO DAS SOMBRAS. Record, Rio de Janeiro, 1999.

 

            José Castello, jornalista e leitor assíduo da boa literatura, reúne em seu livro Inventário das sombras, o perfil de vários escritores da literatura brasileira, portuguesa e latino americana. Castello baseado na sua experiência de jornalista e leitor sensível, sente-se preparado para escrever sobre a solidão e o medo que envolve o ato de escrever. Seu olhar agudo, de extrema perspicácia, arma-se na busca daqueles sentimentos que viveu e conta como e quando encontrou amigos para compartilhar a grande aventura da escrita. O que faz a leitura dele diferente de outros é que Castello pode criar através deles, seu próprio inventário. Sua coleção “suma de uma formação literária” deixa para nós uma das mais lúcidas leituras das “zonas de penumbra” que ele se propôs decifrar. Castello entra então

 

(...) nos conflitos íntimos, nas decepções, nos sentimentos difíceis, nos horrores - a zona de penumbra, enfim, que move o fazer literário; região de espíritos atormentados, dilemas inomináveis e temperamentos frágeis, que transformo agora em matéria-prima deste pequeno inventário.( p.8)

 

            Castello recolhe no seu Inventário o percurso da via crucis de inúmeros escritores, entre eles destaco Raduan Nassar, Hilda Hilst, Clarice Lispector, Ana Cristina César, José Saramago, Manoel de Barros só para citar alguns.

            Raduan teve um percurso diferente dos outros escritores, pois desistiu da literatura para se dedicar a um outro tipo de criação: a de galinhas. É através de Raduan que vou chegaremos aos outros e também a Castello.

            O fio com que o jornalista-analista costura suas observações é quase invisível. Castello tem uma forma singular de expressão. Ele afirma e mais adiante retorna para se desdizer, num constante andar em voltas sem passar pelo mesmo caminho. Sua pergunta  a respeito de Raduan Nassar é: onde está o fio que perdemos quando lemos as críticas feitas a ele? E entre avesso e direito, claro e escuro ele nos entrega a sua reflexão. Ela é algo que brota de dentro de si, como a água limpa brota da fonte. Uma forma de pensar que nos ensina como é difícil encontrar a coerência, a determinação, a coragem, o princípio da coisa. Uma vertente pouco usada, essa.

            Às vezes a reverência do crítico atrapalha (como ele mesmo experimentou), outras vezes a crítica ameaça a integridade do artista, fulmina sua força, detona sua tentativa. Castello nos propõe então um modo de pensar.

            Castello diz: Raduan não é Rimbaud, Raduan não quer nem ser um mercenário, nem a glória. Na maioria dos casos a glória se tinge de soberba, desdém, vaidade, desmedida. “Raduan quer mas não quer”, ele afirma. Raduan luta, mas não joga, não gosta do jogo. Raduan é um zeugma.

            Raduan não quer mais publicar e publica. Molecagem diz Raduan. Molecagem de primeira: “Mãozinhas de seda”. Raduan combate com entrevistadores, ensaístas, resenhistas. Raduan quer dormir, ver novela e se atirar na rede. Não há nada melhor para quem tem a consciência leve, o corpo solto, a vida entre silêncios e galinhas. Quem leu Clarice Lispector como Castello, compreende que as palavras de Raduan são todas metáforas que Clarice já traduziu para nós. Clarice também encarnava um mistério, que Castello lutou a vida toda para decifrá-lo.

            Raduan vive entre o dizer e o silêncio. Entre o ser sem ser. Raduan já espumou a sua cólera, já fechou as contas mas Raduan vive e se vive continua sendo.

            Em Raduan se lê a recusa. Raduan se nega ao mito. Raduan não acredita na ciência. Raduan é uma sentinela. “Falar é realizar um jogo que não é seu”, afirma Castello. Mas seu silêncio se propaga em nós como uma tocha de fogo.

            Por quê? nós perguntamos. Raduan assim se justifica: O escritor, se obriga a dizer: “Valorizo livros que transmitam a vibração da vida”.

            No entanto ele não mais escreve mas é escritor, agora “ex-critor”, no entanto “luta nas trevas dessa atividade humana tão suja como criar galinhas”.

            Ao nivelar a criação de galinhas à criação literária, Raduan devolve à literatura o vigor que ela havia perdido. Foi preciso “que o escritor se negasse a aceitar parte do estatuto da obra para que pudéssemos pensar melhor no quanto a literatura é manipulada”, observa Castello.

            Castello desvenda para nós, como grande crítico e leitor, o quanto a atividade crítica é manipuladora.

            Mas Castello não termina aí. Ele vai tirando de cada escritor, pedaço por pedaço, aquela segunda pele que lhes deixaram colar e desnuda para nós seus duplos. Mas o faz como um crítico apaixonado, deixando para cada um deles, gestos de ternura.

            Pela fala da poetisa Ana Cristina busca a justificativa perfeita de seus atos: “Sou uma mulher do século XIX / disfarçada em século XX”; Como o poeta Manoel de Barros se sente contaminado pela doença que se esconde nas falhas da língua, na imprecisão das palavras, nas ciladas do idioma. Castello aprende com Manoel o método de desrepresentar. Com Hilda vive a maldição de Potlatch e através dela entende como driblar o sucesso e chegar a consagração.

            Castello não esconde sua admiração e ao mesmo tempo, a constatação que quase tudo que aprendeu, deve àqueles escritores que amou pelo avesso e que buscou nas suas sombras abrigo para pensar.