apontamentos sobre a Literatura brasileira

 

 

 

incipit

 

                   i. é pela linguagem, pela língua, pelo universo simbólico que nos tornamos alguém: que o mundo se instaura, se organiza, se reproduz e pode ser agido, pensado, modulado, sonhado, modificado, invertido: linguagem é tempo: é a abertura dos campos imaginários antes do imediato e depois enquanto a-tensão do futuro: e nos tornam e nos tornamos sujeitos, fundam a nossa consciência enquanto refundamos o mundo que nos funde: a colonização continuada da linguagem em sua dimensão negativa (a literatura impedida de existir por todos os processos que instauram o lócus de inspeção, a transformação em massa das palavras em objetos, o apagamento da fala das minorias), a permanência de uma gramática do senhor como a única correta (fechada ao que corre nas ruas, nos bares, nos quartos, nas salas, nos campos de futebol, nos teatros de rua, nas brigas, nos crimes, nos amores e nos trabalhos do diaadia), impossibilitam sistematicamente a fuga do brasil (por estar aprisionado aqui não é preciso comungar com o fascismo circundante nem reproduzir ele por covardia ou conveniência), da nação, do sistema produzido e reproduzido durante os séculos xix e xx enquanto ideologia, imaginário e poder (a realidade e a “realidade brasileira”): o lócus de inspeção é apenas um dos seus campos de dominação. sem as dimensões libertárias da linguagem não há individu-ação, não há a fissura crítica entre sujeito e mercadoria (objeto), não há o furor negativo entre as crenças sociais, ideológicas de manada e a singularidade, não há nenhuma revolução seja na “sociedade”, nas “classes produtoras” ou nas “classes miseráveis” (todas as antigas “classes revolucionárias” estão entregues ao sonho de se tornarem “classe média” e os “revolucionários” estão loucos para arrumarem um emprego ou não porem os seus em risco), muito menos nos indivíduos. a existência de uma literatura seria um “sintoma positivo” de “saúde social”, de “esperança individual”: a negatividade estaria, pelo menos, conseguindo se dizer e ser dita: essa seria a abertura da possibilidade de ação, de mudança: praticamente tudo é mediado por imposturas lingüísticas que se tornaram o real: a revolução se tornou apenas uma desculpa para conseguir algo para sobreviver.

                   ii. o lócus de inspeção não é uma realidade em si, não é “fato social”, “fenômeno cultural”, mas deformação que toma sentido somente a partir de determinada perspectiva: a torção do campo cultural, essa devastação brutal produzida por uma oligarquia de letrados (confiada em todas as formas instituídas de poder), essa castração continuada da literatura e a instauração da Literatura brasileira, acontece e se arma numa arquitetura (lócus de inspeção), num teatro (o brasil), com personagens (a oligarquia das letras) e com procedimentos (processo editorial) apenas para um indivíduo em situação: a estrutura é puramente relacional, seus sentidos só se desdobram quando o ponto de vista não comunga com as “regras do jogo”. somente ao não se aceitar as “regras do jogo”, ao não querer participar de tais regras, somente ao se sofrer a exclusão de algo que não se queria daquela maneira, ao se entender as razões e os mecanismos, e ainda assim não querer participar, é que o conjunto e suas transversais vão se compondo, se articulando, se abrindo na composição de um lugar: e vemos então onde estamos, onde estávamos, onde estão todos, o que estão fazendo e porquê: o que se queria não existia, o que existe não é para se querer. o sistema neurótico, nazibrasileiro, onde se diz e se vive o que não é, é então negado: a literatura duplica seu sentido e sua luta: a literatura brasileira é campo privilegiado para se conhecer o inimigo, para estar em seus olhos, participar de suas crenças, caminhar com sua lógica e reconhecer seus meios e fins.

 

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1. o lócus de inspeção (a Literatura brasileira) é um sistema construído com “elementos” que dispõem respostas imediatas, reconhecimentos narrativos, vivenciais, historiográficos, sociológicos, estatais e midiáticos: funciona com um imaginário mínimo (colante), isto é, aquele que permite o reconhecimento e a circulação com um arsenal de palavras, imagens, situações, articulações que são do próprio depósito social de tropos, clichês, crenças, lógicas, curiosidades e sentimentos. em todo contato (tentativa de interação) tudo se dá de imediato, sem que o jogo negativo do pensamento seja exigido (talvez porque não esteja no fundamento, na “origem textual”, na “reflexão narrativa”). esse lócus só se realiza (na escrita, na leitura ou para a publicação) quando é reconhecido, isto é, quando não é “estranho” (quando é estrangeiro é muito bem recebido, permitindo quadros de comparação à crítica e aos leitores, o que facilita a recepção: mas todas as traduções passam pelos gostos, pelos desejos, pelas permissões da oligarquia das letras: o outro é selecionado para comungar), quando compartilha, quando não exige nem resulta em consciência, quando comunga, quando festeja, quando paraleliza. o conjunto inteiro, paradoxalmente, age e existe como se fosse feito por formas fixas, por estruturas complementares e esperadas, aceitas e requeridas para significarem sem força, sem pensamento, sem a reflexão enquanto negatividade, sem devires em redes críticas, sem a dialeticidade que desloca e dissolve, sem a rearticulação em nódulos narrativos dos fluxos profundos da vivência.

2. o lócus de inspeção (http://www.unir.br/~caldas/artigos/oligarquia.html) é uma arquitetura estranhamente platônica, onde o pretenso modelo (o real, a sociedade, a história, o próprio lócus vividos como instâncias objetivas independentes) coincide exatamente com a cópia (a Literatura brasileira). a aparência (o real) e a Literatura brasileira (a cópia) se dão no mesmo nível (por isso o reconhecimento e a exigência de reconhecimento para funcionar todo o processo): o verdadeiro mundo, o das idéias, foi invertido e saiu do além platônico para dentro da cópia, agora representando o modelo (o brasil, o mundo, a história) enquanto verdade. o “mundo das idéias” e o “mundo social” agora se identificam sem estranhamento, sem simulacros, sem multiplicidade, espelhamentos, labirintos: o ser e o dizer, sem contradições, diretamente sem desconfianças, são mediados pelo lócus numa rede de confirmações circulares.

3. o lócus de inspeção, de imediato, pode ser compreendido como algo que poderia ter sido vivido, experienciado, visto, tocado, escrito de maneira muito mais radical, profunda e rica: a Literatura brasileira foi construída no lugar da literatura (aquilo que foi impedida de existir, de significar, de ser simbolizada: ficou a escritura falsa (http://www.unir.br/~caldas/artigos/fragmentos.html) dos fidalgotes letrados de todos os matizes).

4. a oligarquia das letras possui vários mecanismos de exclusão, de purificação, de manutenção de suas tradições, do seu olho central, dos seus limites, dos seus instrumentos, da sua construção, das suas verdades, gostos, mentiras; da conservação dos seus ritmos e rituais; na defesa dos seus poderes e influências; na outorga ou não de prêmios; na capacidade de fazer desaparecer esses mecanismos de funcionamento. a crítica continuada, ou fortuna crítica, é um dos seus mais fortes mecanismos para fazer existir, quando funciona, ou fazer não existir ou desistir, quando não existe. forma descarada de reafirmar o mesmo como se fosse diferente. a fortuna crítica não se traduz necessariamente em fortuna pecuniária, mas em continuação e espelhamento: se refere ao poder e a transmissão do mesmo: são fósseis de um processo permissivo, degradado e seletivo: através deles podemos conhecer as ligações entre os fidalgotes letrados e entender a razão de tão “grande fortuna”. fortuna crítica não é “como é recebida a obra”, a “seqüência de textos sobre uma obra”, mas como ela é formatada por essa mesma crítica, como ela é indicada, indiciada, por similaridade. referência, lembrança, parodia, num ritual de renovação constante e de vitalidade perene. os maiores elogios da crítica especializada ou o frio silêncio fazem o mesmo papel em sentido inverso: fazem existir ou desaparecer uma obra. os vencedores são escolhidos na proporção das identificações a partir do papel que aceita representar, da visão de mundo que se empenha em transformar em força narrativa.

5. uma obra, no sistema editorial, precisa de uma fortuna crítica qualquer, mínima que seja, mas sua existência é fundamental. primeiro, para chegar aos seus leitores, não aos leitores genéricos, mas àqueles para quem ela foi escrita; segundo, para gerar fluxos que a multipliquem com enganos, espelhamentos, articulações, comparações, desdobramentos. ter qualidades é requisito, estranhamente, secundário, pois essa qualidade pode ser criada, em parte, pelo próprio processo crítico, oligárquico e nos círculos de leitura: suas virtudes podem ser coladas nela mas na verdade estão longe, ou muito perto, num processo cultural de leitura do perto estando longe seus significados. a fortuna crítica nos faz chegar mais rápido ou descobrir aqueles autores que buscamos sem saber onde. desperta curiosidades e rearticula redes. confirma espelhamentos, induz apoios e gera mais fortuna crítica.

6. somente alguns têm os “meios”, os “instrumentos”, as “relações humanas” para se dizerem, para dizerem seu mundo, seu corpo, suas idéias, para serem ditos, para serem ouvidos. numa “sociedade” onde os meios pertencem a grupos e indivíduos, as idéias e sua circulação, a escrita e seu tráfico são condicionadas na instância da sua própria existência. aquilo que é apartado, segregado, que é excluído deixa de acumular enganos, certezas, dúvidas, prazeres, conversas, paixões, poderes, amizades, palavras, imagens, desejos; deixa de se articular a outros “momentos culturais”, a outros textos, a outros objetos, a outros corpos, a outras línguas: fica nu, despojado de tempo, destransversalizado, imóvel nos quadrantes da sua feitura: deixa de multiplicar ecos, hipnotismos, rememorações: deixa de significar: de ser próximo, íntimo, paralelo, capaz de reunir diversidades: deixa de se afastar da origem, fica preso ao nome, ao lugar, ao tempo.

7. a experiência vazia (é sempre uma “denúncia vazia”) e palavrosa de determinadas classes, grupos e indivíduos se estabeleceu como a única arquitetura possível: seu vazio é o mesmo do tom literário, pastoso e bacharelesco (colegial) do conjunto do lócus de inspeção. esse conjunto se erige para ser espelho possível, esperado e aceito do real. é um dos apoios da consciência nacional, seu apoio de linguagem, linguagem que apaga sua “origem”, seu fundamento de classe, sua voz, seus ritmos apascentadores, seus mecanismos oligarcas, seus interesses, seus negócios e suas negociações: é Arte, é a Literatura: “código universal”.

8. o lócus de inspeção, não vindo da consciência mas de uma espécie difusa de “consciência da classe”, não chega jamais a uma autoconsciência, não chega a se tornar nem algo a ser reconhecido como outro nem como interlocutor possível, o que seria haver chegado à condição de sujeito, de força suficiente para um diálogo amplo: por ela se chega somente ao imaginário letrado de algumas classes, grupos e indivíduos consolidado por determinados meios, processos e limites.

9. o lócus de inspeção como uma “arquitetura fixa”, estável (onde o que entra não perturba a ordem e o que não entra não existe), faz o papel inverso do que proclama críticos, leitores e escrivões (que todos chamam de escritores): ela esvazia a consciência (por isso serve tão bem aos “papéis oficiais”, à “língua portuguesa”, a “gramática” e aos discursos fascistas em seus matizes democráticos e liberais), ela dessignifica, dessimboliza o real e a si mesma (o que é literatura é resignificada, esvaziada, para “fazer parte”) para continuar produzindo e se mantendo enquanto perspectiva letrada de determinada oligarquia intimamente ligada ao conjunto real e ideológico de classes específicas por deterem, além dos poderes estatais, da produção e circulação de mercadorias, o sutil poder de se fazer acreditar, se fazer admirar, se fazer repetir; de educar, de ensinar, de aculturar, de civilizar, de formatar; de se fazer invejável, admirável, extraordinária, sendo somente ridícula, medíocre, perversa, gananciosa e fria: instrumentos reificados de si mesma.

10. o lócus de inspeção é uma arquitetura de linguagem rotacionando fixamente: esse movimento imóvel hipnotiza o sujeito, tornando ele objeto. é processo de esvaziamento onde tudo se resume à superfície e a palavra permitida, negociada e renegociada. o que nos vem não é o real, mas o brasil (mito de construção nacional e seu conteúdo: aquilo que vive visivelmente dentro dele e que serve a ele): o resultado não é o pensamento, a negatividade, mas, através da “beleza” (porque todos garantem que fazem “obras de arte”: http://www.unir.br/~caldas/artigos/arte.htm), elementos fraturados, esvaziados, superficiais que reproduzem o brasil. uma palavra esvaziada vinda do mito de fundação que, além de confirmar ele, o reelabora insistentemente sem solapar nenhum dos seus elementos ou momentos. é uma linguagem que condena a si mesma ao não ser mais do que aquilo que diz ser.

11. os “produtores” da Literatura brasileira, os escrivões, dão continuidade ao conjunto lingüístico como quem passa e repassa dinheiro, uma mais valia simbólica, sem entender, sem contestar, sem modificar o conteúdo dessa negociação continuada. nesse tráfico não pode fazer parte o pensamento enquanto negatividade, superação de localismos superficiais ou compreensão das matrizes perversas do real. o escrivão (o trabalhador da escrita) é um escrevente inconsciente exigindo a inconsciência mercantil do seu leitor (aquele para quem é escrito esta Literatura, que é tão somente “brasileira”, isto é, aceitação explícita da arquitetura limitante do lócus de inspeção se dizendo sempre universal, mundial, “significativa além da língua”).

12. a Literatura brasileira é uma espécie de verborragia literária (literal), aquela que diz para esconder, esconde para dizer e, todos os seus mecanismos, são um afastamento de si mesma e do mundo que diz dizer. aborto palavroso da visibilidade esperada, sabida, acreditada; aborto que se afasta do real por sua incapacidade, desejada e escondida, em dissolver criticamente os nódulos ideológicos, os coágulos perversos, os tumores míticos, as intumescências livrescas, as cegueiras oligárquicas de classe média e o servilismo de funcionário público.

13. a sensação de uniformidade do lócus de inspeção (atribuída à “língua portuguesa”, ao “instinto de nacionalidade”, ao brasil, aos temas) advém principalmente do esgotamento do modelo (não do modelo, que já demonstrou sua plasticidade, sua capacidade de fazer variar o mesmo: de um projeto de uma sociedade escravista à pós-modernidade com o mesmo código, o mesmo ritual que não se desestabiliza, sem protocolos inesperados), da falta de diversidade da significação, do enfrentamento da alteridade (que aparece sempre como um regionalismo recauchutado: uma Literatura recauchutada). os regionalismos são o que salvam pontualmente a Literatura brasileira.

14. determinado conhecimento, experiência – é vetado, impedido de fluir, sendo substituído pelo conhecimento e experiências letradas de determinadas classes em precisos momentos sociais: não se transmite o fluxo integral, mas parcializado; não se faz explodir a consciência, mas o mesmo é renomeado. O pensamento advindo dessa lanternagem de segunda categoria deixa bem claro como a nação pensa, como vê, como desdobra a si mesma enquanto palavra e, com isso, podemos dispor de uma via privilegiada para saber como “o povo” produz, reproduz e faz circular suas moedas falsas, moedas que se crêem representação, suas mais ridículas e fascistas imagens como se fosse arte.

15. a oligarquia das letras possui vários mecanismos de exclusão, de purificação, de manutenção de suas tradições, do seu olho central, dos seus limites, dos seus instrumentos, da sua construção, das suas verdades, gostos, mentiras; da conservação dos seus ritmos e rituais; na defesa dos seus poderes e influências; na outorga ou não de prêmios; na capacidade de fazer desaparecer esses mecanismos de funcionamento. a crítica continuada (forma descarada de reafirmar o mesmo como se fosse diferente, novo, revolucionário), ou fortuna crítica, é um dos seus mais fortes mecanismos para fazer existir, quando funciona, ou fazer não existir ou desistir, quando não existe. a fortuna crítica não se traduz necessariamente em fortuna pecuniária, mas em continuação e espelhamento: se refere ao poder e a transmissão do mesmo.

16. como qualquer obra precisa de uma fortuna crítica mínima (sistema de referência, citação e identificação em forma espiralada que é uma constante renovação, revitalização e rememoração), primeiro, para chegar aos seus leitores, não aos leitores genéricos, mas àqueles para quem ela foi escrita; segundo, para gerar fluxos que a multipliquem com enganos, espelhamentos, articulações, comparações, desdobramentos. ter qualidades é requisito, estranhamente, secundário, pois essa qualidade pode ser criada, em parte, pelo próprio processo crítico, oligárquico e nos círculos de leitura: suas virtudes podem ser coladas nela mas na verdade estão longe, ou muito perto, num processo cultural de leitura do perto estando longe seus significados. a fortuna crítica nos faz chegar mais rápido ou descobrir aqueles autores que buscamos sem saber onde. desperta curiosidades e rearticula redes. confirma espelhamentos, induz apoios e gera mais fortuna crítica.

17. mas somente alguns têm os meios, não a capacidade, de se dizerem, de dizerem seu mundo, seu corpo, suas idéias (com o tempo os vencedores são escolhidos por exclusão, diminuindo progressivamente, na proporção das leituras, das exigências dos julgadores, dos editores, dos professores, e dos leitores em geral: o “resultado final” é a nata, a “fina flor” daqueles que reproduzem e permitem a reprodução do espírito do lócus). numa “sociedade” onde os meios pertencem, as idéias e sua circulação, não sua produção, são condicionadas. aquilo que é apartado, segregado, que é excluído, deixa de acumular enganos, certezas, dúvidas, prazeres, conversas, paixões, poderes, amizades, palavras, imagens, desejos; deixa de se articular a outros “momentos culturais”, a outros textos, a outros objetos: fica nu, despojado de tempo, imóvel nos quadrantes da sua feitura: deixa de ter ecos, hipnotismos, rememorações: deixa de significar: de ser próximo, íntimo, paralelo, capaz de reunir diversidades: deixa de se afastar da origem.

18. como a Literatura não é da instância da visibilidade, não se dá no imediato, não se dispõe diante dos olhos, seus labirintos, salas, salões, celas, corredores, cozinhas, banheiros e salas de tortura (numa arquitetura panóptica) escondem completamente seu expor tudo: tudo é visível no lócus de inspeção precisamente por nada poder ser visto. a visibilidade dessa espécie de panóptico se reduz aos efeitos de poder, as pirotecnias vaidosas dos leitores, ao rigor patético dos críticos e dos resenhistas: a claridade é a melhor maneira de esconder a escuridão.

19. como a Literatura brasileira é uma “resposta” a pergunta-brasil (pergunta sempre feita pelas elites na construção das suas ideologias), o que ela sempre responde é a nação enquanto construção simbólica, ideológica: o pensamento enquanto negatividade, a consciência, a revolução, a alteridade radical estão sempre muito fora do lócus de inspeção. o que se permite ficar já está tão “colonizado”, tão dessimbolizado, tão entregue às formas e aos ritmos do mesmo que o pensamento ali pode somente “ler” e, atraído pelo campo, “dizer” apenas obviedades comparativas. a Literatura brasileira ao ser “lida” aponta o Brasil enquanto imaginário ideológico. seria como se as palavras se desligassem das coisas, não pudessem mais indicá-las, não pudessem mais fazerem parte do vivencial que produz e possibilite suas formas de existência e as suas ligações imaginárias, mas fossem exclusivamente indicativas daquilo que pensamos das coisas sob a perspectiva reificadora. Haveria sempre um reencaminhamento impossibilitando a ação e o próprio pensamento. Isso ocorre sistematicamente no lócus de inspeção: tudo nela leva à nação e seu imaginário ideológico, mas pensamos todos que é às “nossas realidades”: ela aponta uma coisa e diz outra, enquanto o leitor e o crítico vêem sempre segundo um similar “estrangeiro”: o lócus de inspeção é necrófilo (e narcísico no sentido freudiano: não consegue escoar sua energia pulsional: não consegue ser reconhecido pelo(s) senhor(es)): modelo rijo, hirto, que, mesmo morto e mumificado, se modifica sem se transformar nem em outra coisa nem ser substituído: a colonização dos protocolos invariáveis: é isso que é exposto por todos os poderes como Literatura brasileira.

20. o contato direto e continuado com a Literatura brasileira faz sentir uma faixa escura, um continuado ponto cego, uma faixa estranha onde podemos pressentir o que nos foi roubado, o que foi camuflado, o que foi escondido, o que é mentira, insuficiência, burrice, capachismo, falsificação.

21. uma das funções primitivas da Literatura brasileira é aproximar “os leitores” do sistema-nação, do real e da história, ao invés de separar eles numa formação crítica da consciência. essa Literatura une o que devia separar, e torna próximo demais o que devia tornar estranho. na Literatura brasileira as palavras não servem para distanciar o mundo, separar ele de nós, dar tempo, nos separar do imaginário social, o indivíduo das suas crenças, mas para fazer o “mundo” se colar tão intimamente ao nosso corpo, aos nossos olhos, as nossas línguas, as nossas crenças para que não haja brecha alguma: e o mundo (brasil) “somos um só”, participamos “todos juntos” (juntos demais) da mesma realidade: a função crítica (que exige distanciamento) se dissolve, ou não foi jamais constituída como possibilidade objetiva dessa forma monstruosa de linguagem. esse estranhamento só é possível com uma “literatura estrangeira”, o que além de duplicar o peso do senhor (multiplicando os fantasmas) se remete ao reforço dos “leitores críticos”, isto é, se tornam moeda de comparação, escamoteando exatamente o papel ideológico da Literatura brasileira, e o que seria adensamento se torna  o empobrecimento denso da rede viva de significados literários e suas pontes ideológicas com a manutenção da nação.

22. a Literatura brasileira funciona como um dos mecanismos pacificadores da nacionalidade. é mais um dos sistemas integrados e integradores. seria, ao tratar com a palavra em sua instância demiúrgica, um campo desintegrador, gerador de protocolos inesperados, mas faz exatamente o oposto. ela inibe a palavra instável desde o nascedouro, seja nas crenças familiares sobre a cultura, seja na escola e sua reprodutibilidade cancerosa, seja no contato com livros, seja nas mediações sociais da cultura: seu papel é retardar. enquanto valor de troca só serve quando é da mesma moeda em circulação.

23. como a Literatura brasileira não encontra equivalente (“Última flor do Lácio, inculta e bela,/És, a um tempo, esplendor e sepultura”: sempre se arruma uma grotesca desculpa “poética”), como não encontra nem “afeto verdadeiro”, nem “companheirismo” ou “igualdade” (e não encontrou e jamais encontrará enquanto for apenas um lócus de inspeção), transfere toda sua energia à reprodução do mesmo, ao enrijecimento dos protocolos oligárquicos e ao “mercado editorial”: transforma a palavra em “objeto de valor de troca”: adequa sua palavra à palavra social em sua visibilidade ideológica, em sua existência mercantil, em sua capacidade especular (jamais especulativa: a mímese é somente uma desculpa jornalística): quanto mais a temos (lemos, escrevemos, propagamos) mais impotentes ficamos, quanto mais a dispomos mais ela se indispõe, quanto mais a devoramos mais famintos ficamos: a tragédia de todas as mercadorias.

24. a oligarquia das letras não é autônoma, não cria suas leis, seus protocolos, suas crenças que se apresentam como a Literatura brasileira: ela é apenas reproduz em termos “literários” as perspectivas esperadas, os processos aceitos, as formas tornadas necessárias, os ritmos audíveis, os significados compreensíveis, os procedimentos servidores: ela escreve em-nome (como a História escrevia antes do século xix e depois passou a fazer com tantos artifícios que parece que não continua escrevendo para “educar o príncipe”, “aconselhar o comerciante”, domesticar o tempo ou “formar o cidadão”): da língua, da pátria, do real, do povo, da história, do indivíduo, do explorado, dos marginais: seu senhor, para quem ela fala, educa e disciplina é a sua matéria, seu campo de força e sua finalidade: não há nenhum complô, nenhuma “classe dominante”, nenhuma ideologia enquanto cartilha ou manual do produtor.

25. o lócus de inspeção se apresenta ao leitor enquanto exemplum, enquanto topos de qualidade (obra de arte literária, qualidade da língua, lugar de deleite e aprendizagem), mas ele se alimenta de si mesmo (que é o mesmo que se alimentar das ideologias da nacionalidade), desse gozo integrado e ingênuo do leitor despreparado pelo próprio “sistema cultural” para consumir o “imaginário nacional”: a cadeia litero-ideológica e seus “momentos estatais” não se quebram em nenhum momento: mesmo as flexões mais exacerbadas (contando que apareçam) ou as pancadas mais fortes (praticamente impossível serem deixadas aparecer, circular e significar) não conseguem trazer a consciência a este corpo esclerosado e superfuncional: tudo serve para retroalimentar e reproduzir sem perturbação o próprio lócus de inspeção (não só um panoptikon, mas um desmesurado cupinzeiro). a dialética desse processo pode ser apenas, numa perspectiva deslocada, um espectador, nunca um modificador (quem não é cupim não participa do cupinzeiro e quem é tamanduá não destrói o cupinzeiro, apenas se alimenta de alguns cupins destruindo somente partes que logo se regeneram com saliva e terra: além do tamanduá fazer parte do “complexo”, a tendência é que ele se transforme em cupim, ou seja, depois, transformado em grande cupim pelo cupinzeiro em festa).

26. para a oligarquia das letras o “texto literário”, o “texto aceitável” é aquele que, de alguma maneira, reproduza os elementos fundamentais que acionem a lógica do lócus de inspeção (abrindo o teatro-brasil). é aquele que consegue se esconder na familiaridade como se ela existisse sem questões, naturalmente, socialmente, historicamente (como se fosse um dado-de-existência), como se a familiaridade não precisasse ser desfamiliarizada, aberta em clareiras de estranheza, sendo posta fora das suas regras, das suas ilusões perversas, dos seus protocolos cotidianos torturados pelo uni-verso do trabalho e, só assim, podendo ser exposta em seu horror. um elemento que não deve faltar é o brasil em qualquer das suas dimensões. o “texto literário” deve respeitar a gramática (portuguesa), a realidade (histórica, social, lingüística, natural), respeitar os códigos, o cerimonial, os processos do lócus de inspeção; aceitar não somente a maneira de produzir, mas as formas para editar e fazer circular: se moldar a “corrente” que possibilita produzir uma “linguagem aceitável” e um “texto acessível”: o leitor compra um produto palatável, respeitável e “familiar desde 1836”. e o que não é familiar, quando não é silenciado, passa e repassa quantas vezes for preciso para ser reracionalizado (um dos papeis dos cães de guarda das letras), perdendo seu caráter, sua força, sua forma, sua inconformação: a diferença é transformada no mesmo: sua radicalidade, seu terrorismo, sua inadaptabilidade é tornado tolerável, mas o normal é a eliminação, o desaparecimento, o apagamento em todos os momentos.

27. o escrivão (sempre chamado de escritor por perversa ingenuidade burra) da Literatura brasileira é alguém que aceita: fazer o nome (ser tornado autor: confunde o ser autor e o ser escritor como se fossem a mesma coisa) é participar das perspectivas do poder, do sistema oligárquico, reconhecimentos: esse nome não se relaciona com valor (literário, artístico, filosófico), mas com determinado sistema de trocas e circulações. o escrivão brasileiro não é somente aquele que se encontra num lugar (estatal, letrado, branco, católico, homofóbico, homofônico, midiático, racista, democrático), mas aquele que se vende (“o ofício de escritor”, a “Literatura é um trabalho”) para a-trair cúmplices voluntários (os leitores consumidores): seu papel é o de isca para compradores: um fazedor de mercadorias, um trabalhador com todas as questões da mais-valia, da reificação, da consciência da classe e da exploração sem serem resolvidos na sua atuação, que jamais é uma escrita, mas sempre uma escritura falsa.

28. onde há regimes ditatoriais, totalitários, autoritários, oligárquicos há resistência: a literatura e certa práxis é a resistência ao lócus de inspeção, a virtualidade imaginaria luso-brasileira e suas dimensões lingüísticas, artísticas, literárias, ao brasil enquanto construção ideológica.

29. é o leitor (crítico, escritor, professor, editor) quem “confere valor” ou não segundo um conjunto cultural estabelecido por determinado “imaginário nacional”, por específicos agenciamentos da oligarquia das letras, por parâmetros que respeitam, reproduzem e imitam o círculo estabelecido: o gosto que decide é viciado não somente por suas diversas proximidades, mas por suas cumplicidades.

30. o “escritor brasileiro” não exerce nenhuma distorção do lócus de inspeção. sua função tem sido eminentemente conservadora (quando não integrada, fazendo parte não só de um viés ideológico, mas empregado direto e defensor de governos e ditaduras). cada obra percebida “contra o pano de fundo” da tradicção não representa, ou apresenta, nenhuma distorção (as possíveis distorções são fogos de artifício). quando há, ou pode haver, qualquer aspecto distorcivo (corrigido em todos os “momentos” de um livro, da feitura à leitura) é considerado um erro, imperfeição que, se não for corrigida, não prossegue. o “pano de fundo” é o lócus de inspeção, o imaginário geral do nacionalismo verde-amarelo, a “língua portuguesa”, o brasil, os modelos estrangeiros admitidos e admirados como possíveis e insuperáveis (filtrados, traduzidos e restabelecidos pela própria oligarquia das letras) e o mercado editorial com sua parcela de respeito ao “gosto do mercado”, ao desejo do mercador.

 

são paulo, perdizes, julho de 2004.