CAROLINA MARIA DE JESUS E MAURA LOPES CANÇADO
NÚCLEO DE ESTUDOS EM HISTÓRIA ORAL-USP
“O louco é divino, na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno”
Maura Lopes Cançado
“Tem dia que eu tenho vontade de virar animal e viver na selva. Mas se fosse animal não ia ter sossego. Porque o desgraçado do homem haveria
de aparecer na selva e perturbar a minha tranqüilidade (sic)”
Carolina Maria de Jesus
Mais que epígrafes, estas duas frases servem como faróis iluminadores de um fenômeno estranho no comportamento da cultura brasileira deste século: o aparecimento de textos satélites, de circunstancia, marginais tanto à crítica como a história literária brasileiras. São escritos que fogem da linhagem de romances, contos, poemas, enfim, dos gêneros freqüentados por autores e lidos pelo público brasileiro, que até então esteve pouco aberto à noção de “popular urbano”.
Escritoras de diários intrigantes, porque reveladores de intimidades pouco expostas, Maura Lopes Cançado e Carolina Maria de Jesus, foram personagens que arranharam a reputação exclusivista de nossa intelectualidade socialmente enquadrada e modelar[1]. Com seus trabalhos publicados e aceitos, elas não chegaram a comprometer a unidade do grupo tido como “culto”, ainda que o sucesso as tenham tocado. Mesmo ficando “de fora” para a posteridade, visitaram inferiores do reconhecimento amplo, mas - eterno retorno-, voltaram aos seus lugares sociais de origem: a marginalidade. Marginalidade que foi física, no caso de Carolina, e psicológica, para Maura. Marginalidade, de qualquer forma.
Carolina morreu recolhida em seu sítio em Parelheiros, bairro de São Paulo; Maura, empobrecida, acabou como assassina de uma colega de reclusão na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Os “esquecimentos” devem ser vistos pelos críticos como estranhos para pessoas que tangenciaram o mundo da fama através das letras. Corolário disto, a necessidade de luzes sobre formas de consideração da fortuna crítica de uma época que exerceu eficientes maneiras de triagens. Confinadas pelos guardiões da “norma erudita”, essas autoras estão legadas a um abandono estranho até mesmo às mais atentas feministas.
Queiram ou não, elas foram marcos. Pode-se mesmo dizer que depois delas a noção de “popular urbano” se impôs, no Brasil, como pólo oposto do erudito[2]. Valendo-se dos meios dados pela modernidade industrial, foi através da mídia que elas cintilaram. Ainda que em breve espaço de tempo, ambas representaram um território intermediário entre o “popular tradicional” e o culto fechado no arremedo europeu. Formularam um esforço para redefinição de cultura popular como parte do contexto industrial. Quebrando o simplismo reinante no Brasil, estas duas mulheres expuseram ângulos da cultura nacional pouco visitados, mostrando inclusive que popular não é apenas desdobrando do rural, do velho, do usado. Mais que isto, popular também deve ser considerado a partir de inscrições no moderno e urbano. Coisas de um mundo industrial como o nosso, forjado na pressa e no desespero do abandono de um passado que mal se despedia.
O fio da meada que leva ao entendimento das produções das duas mulheres citadas propõe questionamento dos significados tanto dos trabalhos dessas autoras como de suas recepções pelo público. Que representariam efetivamente seus textos: concessões de época? Licença na dominação masculina do circulo intelectual? Através do exame dos diários que fizeram as duas autoras conhecidas, pretende-se propor pistas capazes de apontar explicações do momento histórico de suas inscrições como personagens do mundo das letras e do “apagamento” que se seguiu. Desdobramento disto, busca-se questionar emblemas internados em papéis de mulheres que fora da ordem dominante conseguiram mexer nos códigos consagrados[3].
Marisa Lajolo chama atenção para um fenômeno curiosos na composição cultural dos anos 60 deste século no Brasil. Nota que, por essa época, havia um grupo de mulheres com “idéias na cabeça e caneta na mão”. Lajolo refere as autoras que então assumiam, apesar da dificuldade de afirmação em meio cultural dominado por homens, posições de revelo em nossa cena intelectual[4]. Bem nascidas e educadas, personalidades distintas como Clarice Lispector, Lígia Fagundes Telles e Nélida Piñon se compunham com alguns nomes de mulheres que já haviam marcado época, como Cecília Meireles e Raquel de Queiroz. Consagradas gradativamente, essas escritoras tiveram seus vários livros – contos, romances, poesias – aceitos e passaram a impor, em nosso meio, a relevância de uma escrita feminina. Juntas, configuraram grupo capaz de romper o hermetismo masculino existente até então. Não foram, porém, as únicas, ainda que estas, depois de estabelecidas, se firmassem com marcos permanentes de nossa cultura letrada.
Entre outras poucas, pelo menos duas escritoras circunstanciais despontaram no espaço das letras nacionais dos fins dos anos 50. Aqueles eram dias de euforia da nossa contracultura tropical, vale assinalar[5]. Com sucessos editoriais expressivos, contudo, tais mulheres não se tornaram famosas por suas opções face os gêneros de escrita que mais gostavam[6]. Não foi a poesia e nem o conto que as notabilizaram, ainda que estas fossem alternativas cultivadas por Carolina e Maura, respectivamente. O diário, gênero raro entre nós, até então assumindo pelos homens públicos, foi a fórmula que as fizeram famosas. Talvez tenha sido exatamente por esta variação contrastante que elas conseguiram sucesso. Curioso notar, entretanto, que ainda que tenham praticado outros gêneros estes não passaram de complementos.
Por lógico, fala-se do registro de duas experiências diferenciadas tanto nos resultados formais quanto na qualidade dos registros dos teores vivenciais de cada uma delas. Sendo que, originalmente, Maura era filha de fazendeiros ricos e Carolina mulher pobre e sem posses, suas trajetórias foram naturalmente diversas. Fato diverso do comum das pessoas, contudo, só poderia ser pela via da variação que pobres ou loucas teriam lugares. Sem alternativas de competição no círculo dos autores consagrados, ou das emergentes mulheres que assumiam com valentia a competitividade do mercado, seria pela raia da exceção que se dariam os caminhos para escritoras “desviadas” aparecerem no concorrido clã dos personagens de relevo.
Uma louca, Maura, e outra miserável, Carolina, ambas deixaram dois diários que se destacaram nos “anos dourados” brasileiros. Carentes de outros exemplos, até hoje, reclama-se da publicação de textos desta natureza feitos por alguém que palmilhou caminho limítrofe entre o “desviante” e seu contrário. Isto sugere a circunstancialidade desses escritos. Com eles, sem dúvida, a inscrição irreversível da existência de um espaço feminino “desviante” nas maneiras de escritura brasileira. “Desviante” e rebelde, diga-se.
Ambos os textos referidos foram iniciados quase simultaneamente, em fins dos anos 50 e publicados posteriormente. Carolina tem duas edições diferentes de seu diário principal, sendo que uma delas foi publicada logo em 1960, com o título de Quarto de despejo: diário de uma favelada, e, recentemente, com nutrida parcela dos originais deixados, foram (re) lançados em 1996 sob o título Meu estranho diário[7]. Esta publicação se distinguiu da anterior por julgar a primeira “editada” de maneira a comprometer a integridade dos escritos originais. De qualquer forma, é importante lembrar que o Quarto foi publicado com enorme sucesso[8]. O Segundo documento, Hospício é Deus: diário I, de Maura Lopes Cançado, chegou ao público em 1965[9] e, ainda que com sucesso bem menor, teve ampla aceitação. Vistos no conjunto da produção literária da época, os dois diários expressam dilemas de interpretação em nível do padrão letrado em voga. Sendo que os resultados da recepção dos diários foram diversos - - no caso de Carolina Maria de Jesus o sucesso veio do dia para noite, e no caso de Maura Lopes Cançado, surgiu de forma mais discreta -, cabe considerá-lo filhos do tempo, produto apenas possível em uma época em que valores “tradicionais” eram contestados. Na onda iconoclasta brasileira da contracultura elas couberam como atestado da novidade da época.
Em nível de consumo, a enorme aceitação do primeiro destes diários publicados, o de Carolina, que aliás se tornou sucesso internacional também, se enquadra no parâmetro diferencial do segundo, que tem ficado mais restrito aos círculos nacionais. De toda maneira, o mesmo ambiente que via nascer a bossa nova e a jovem guarda; que assistia o Brasil ser, pela primeira vez campeão mundial de futebol, de boxe e de tênis: que constituía as primeiras grandes indústrias automobilísticas instaladas, exatamente no momento que despontava a arquitetura de Brasília com “a capital da esperança”, deixava espaço para expressões de duas desajustadas mulheres.
Em uma e em outra situação, contudo, estavam presentes as contradições e os desatinos da cultura brasileira, em sentido amplo. No circuito urbano nacional, que se modernizava mantendo contrastes explicáveis pelo progresso econômico acelerado feito em oposição à ordem tradicional, se explicam os desajustes de personagens sensíveis às transformações operadas em um meio que, pelo menos, comprometia padrões econômicos e psicológicos alicerçados em outra ordem. Não deixa de ser relevante o fato de ambas as autoras terem vindo de Minas, do interior daquele estado, e se instalado nas maiores cidades do país, no sudeste. De certa forma, repetia-se nelas o mesmo destino da economia nacional: o caminho do sul. Curiosamente um indo para o Rio de Janeiro e outra para São Paulo, sinonimavam também a variação de preferência dos migrantes que deixavam o exclusivismo da ex-capital federal para busca de outros pontos de realização individual.
A reflexão sobre o sentido dos diários, independentemente de suas motivações iniciais, se justifica fora dos pontos de origem das autoras. Não eram “idéias fora do lugar”. Mais que isto, eram mulheres perturbadoras de novo lugar social feminino que despontava e neste sentido, suas experiências estavam nos lugares. Foi na cidade grande que ambas comprometeram explicações sobre a vida pessoal e coletiva, sobre o indivíduo em relação ao enquadramento no projeto político nacional.
De qualquer forma, ambas tiveram o interior de mInas como referencial. A vida no campo, contudo, foi angulada de maneira diferente pelas duas mulheres que exprimiam visões de classes divergentes. Carolina sempre evoca o passado campônio como utopia ideal[10] e, contrariamente, Maura o detrata[11]. Talvez estes comentários fossem menos importantes ou quiçá mais genéricos, não implicassem algumas coincidências preciosas para justificar a força afirmativa de que há um sentido de complemento entre as duas figuras de mulheres escritoras. Afinal, deixar o passado rural significava alternativa de participação no que de melhor poderia existir na vida social brasileira: a cidade.
Independentemente da procedência social das duas, vale notar que em comum os dois diários ostentam o aval de homens que, de certa forma, apresentaram e introduziram os livros. À guisa de prefácios escritos, como seres relativamente alheios às experiências das autoras, estes elementos funcionam como se fossem elos ou mestres de cerimônia entre os mundos distantes das mulheres marginalizadas porque pobres ou loucas, porque fugiram aos padrões comportamentais do tempo. Isto equivale dizer que sem os “homens protetores” estas mulheres poderiam ter ficado sem a “licença”para o sucesso. O fato de ambos os livros serem introduzidos por jornalistas de renome, é também elemento básico para a recuperação da atmosfera reinante em época em que se valorizava a crônica urbana e popular. Aliás, é cabível lembrar Nelson Rodrigues e Rubem Braga se firmaram nesse contexto.
Corolário da vida cotidiana, o gênero diário servia de endosso das teses atentas à ilógica da vida moderna que despontava. No caso, além de se tratar de diários, merece consideração, o fato de serem diários femininos.Mostrava-se, assim, mais fácil indicar a variação psicológica em mulheres que seriam, afinal, vulneráveis mais expostas à suscetibilidade das mudanças operadas no comportamento de uma cultura que, aparentemente, rompia com o passado histórico. A experiência dramática de mulheres marginais, no entanto, teria que, atingir o público, traduzir o teor violento da “vida como ela é”. Função do jornalismo “denunciar”. Função do jornalista homem revelar mulheres vitimadas pelo processo.
O outro lado desta experiência é igualmente interessante, pois o diário, para as duas, tornou-se mecanismo de afirmação de experi6ncias pessoais e, sobretudo, forma de contato com o mundo não marginal. Válvula importante, no caso de Maura ela mesmo declara que: (3/1/1960) “meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas – depois rasgo mais da metade, respeitando apenas, quase sempre, aquelas em que registro fatos ou minhas relações com pessoas. Justamente nestas relações está contida tôda minha pobreza e superficialidade[12]”. Carolina dizia-se poeta e que escrevia tanto como forma de, ilusoriamente, ficar rica, como para se abstrair. Neste sentido, vale registrar duas passagens que são, apesar de contraditórias, complementares: (16/11/1958) “se estou escrevendo e (sic) porque tenho pretensões – quero comprar uma casinha para os meus filhos”; tudo indica que para Carolina, pela sua visão de vida, só lhe seria possível vencer através das letras que, paradoxalmente, a atrapalhavam, pois, como registrou: (1/11/1959) “eu desêjei varios empregos. Não aceitaram-me por causa da minha linguagem poetica (sic)”.
Sobre o caso de Carolina Maria de Jesus existe uma série de interpretações que percorrem a vida da autora julgando-a um fenômeno que transita entre a rebelde que denuncia e a escritora manipulada[13]. Sempre, porém, o que persiste é o enquadramento de seus escritos nas linhas da exceção feita por uma negra, favelada, mãe solteira, chefe de família. Maura, sem ter atingido em extensão e sonoridade o sucesso de Carolina – apesar de ter tido seu livro mais de uma edição[14] -, coloca-se como uma louca que tinha consciência de seus limites e que tangenciou, como jornalista, o mundo dos “normais”.
Interessante a alteridade dos jornalistas apresentadores dos livros. Ambos, é claro, colocam os textos apadrinhados como marcos. Especificamente no caso da “escritora louca”, avisa o jornalista Reynaldo Jardim, que aos leitores seriam fatais as cicatrizes da leitura do diário de Maura, que calariam “bem fundo, até nos conformados adeptos da omissão”[15]. Audálio mostra o texto de Carolina como denúncia expressa com singular genialidade. Não deixa de ser expressivo, contudo, a relação de ódio que ambas acabaram por desenvolver em relação aos seus “protetores”.
À semelhança com Dantas, que apresentou Carolina Maria de Jesus, Jardim usou de artifícios exagerados para falar das virtudes da escritora “doente mental” e exponencia a importância inequívoca deste livro/diário. O vinculo de Maura com o “padrinho” se dera no ambiente de trabalho onde ela também tentara carreira, sendo que ele, como Dantas, figura como personagem em várias partes do texto[16]. Com Carolina, contudo, o conhecimento fora ocasional, ocorrido quando o jornalista fazia uma reportagem na favela do Canindé em São Paulo.
Se a mitificação de personagens da infância garante um olhar heroicizado ao passado, enquanto Carolina rememorava seu avô como um “Sócrates africano”, seu pai como galante sedutor e sua mãe como uma espécie de santa, Maura matizava seu círculo assinalando seus pais, amigos e parentes como pessoas difíceis, tramadas em histórias de mando e poder, ainda que também esbarrando em tipos próximos do legendário. A recorrente percepção de Minas Gerais como região de origem também obedece a mesma cadência em ambos os casos. Para Carolina era um espaço de sonho e, foi na tentativa de reconquistar o sertão perdido, que ela juntou todo seu dinheiro para comprar na então distante área de parelheiros, bairro paulistano, seu sítio. Maura, pelo contrário, via em seu estado natal um ambiente de brutalidade incontrolável. Isto, aliás, valia não só para o interior, são delas as seguintes palavras: “em Belo Horizonte é difícil entender alguma coisa já que seus habitantes contrariam, de qualquer forma, razão e emoção”[17], e completa sem piedade generalizando que “Minas se vinga sempre: ainda que não se saiba os motivos”, e pontifica mais adiante: “ao povo de Minas é necessário enxêrto de humanidade. Assim torna-se difícil entender alguma coisa em Minas, quando aquilo não foi escrito lá, para o povo de lá, que forma uma raça disforme”, e conclui dizendo que “para cada mineiro há todo um mundo feito de inimigos, dos quais se deve, por princípio, desconfiar”[18]..
Ambas se utilizaram de diários como forma de marcar trajetórias. Também a insistência em escrever é ponto sensível nas afinidades entre as duas mineiras conterrâneas: Carolina escrevia contos e romances e Maura também[19]. Parece que o exercício da escrita funcionaria como mensurador da relação com o mundo.
Contos parece ser o gênero mais freqüentado por Maura, e uma das passagens mais interessantes de sua narrativa revela, em dada situação de sua estadia no manicômio (na entrada de 28/10/1959): “comecei a escrever um conto ‘O Sofredor do Ver’. Gosto do título, trabalhei todo dia neste conto”[20]. Em várias passagens refere a contos, sendo que em dado momento, no dia 12/12/1959, exalta-se ao dizer que: “meu conto ‘O Sofredor do Ver’ foi publicado na primeira página do Suplemento Dominical do ‘Jornal do Brasil’”[21]. Carolina também teve contos publicados, mas vieram no rastro do sucesso dado pelo diário.
É lógico que as diferenças entre as duas interessam. Muito aliás, pois entre a Carolina favelada e padecedora de fome e miséria e Maura bem nascida e crescida com meios de sobrevivência material garantidos, há distâncias enormes. Pode-se dizer que o diário de Carolina é mais espontâneo em termos dos registros. O impulso para fazê-lo partiu dela própria. No de Maura, o estímulo veio de fora e não disfarça o caráter terapêutico.
O diário de Carolina é de uma objetividade crua e o lírico que reponta aparece como contraste contemplativo, espécie de compensação. Em Carolina, os gêneros são compartimentados, não se misturando. O diário de maura é subjetivo e nele o lugar do poético é bem limitado, dando lugar sempre que possível a uma lógica elementar, justificadora dos desatinos vividos. Neste caso, além da apresentação, o livro é dividido em duas partes, sendo que há uma longa explicação da autora, síntese de sua vida até o início das entradas feitas por datas. O fato de ser instruída e ter trabalhado num jornal com figuras como Carlos Heitor Cony, Ferreira Gular e outros, faz com que a leitura do texto de Maura se diferencie do de Carolina por não mostrar erros gramaticais e o registro das experiências ser narrado com clareza irrefutável. Menções aos outros gêneros praticados são comuns. O que não acontece com Carolina, que nunca dizia o que estava escrevendo em paralelo.
O repertório de lembrança de Maura, expresso no resumo que procede de sua vida, faz repontar passagens trágicas como a morte do irmão João, a violência sexual que sofreu ainda menina, as dificuldades que teve enquanto casada aos quatorze anos e separada em seguida com um filho. Suas observações, contudo, são nitidamente filtradas por tratamentos reflexivos que extraem a espontaneidade da narrativa de Carolina. O registro de Maura não evitou palavras pesadas para se referir ao pai e nem poupou-lhe interpretações que assumem o freudianismo das relações. Ela mesma registrou que ele “costumava ter comigo atenções de um namorado. Chegava feliz do quintal, trazendo as melhores frutas por êle encontradas (figos, mangas, laranjas) dando-as a mim, apenas, quando havia outras pessoas na sala – mesmo mamãe”[22]. Ela própria mesclando ternura com a originalidade de quem apresenta o pai a uma outra sociedade, vale-se de termos como “um temperamento paranóide, ou epileptóide”[23]. Este memso homen, para a autora, era alguém magnífico e que “podia ter sido um Wagner, um Nietzsche ou um Napoleão. Não fora a limitação do seu meio, seria o maior homem do mundo. Mas dentro do seu mundo, foi o maior personagem que conheci”.
Percebe-se com facilidade pela narrativa que a idéia do diário, começando em 25/10/1959[24], foi alimentada pelo médico que cuidava da “paciente”e que a noção de loucura já estava dominada pela autora que se declara não louca, mas sim “doente mental”, dizendo ela própria que “procurei retratar-me até os dezesseis anos, embora fatos ocorridos dentro desta idade estejam registrados neste Diário, em minhas conversas com o médico”[25]. Mais que a participação do médico, contudo, é explícito que a figura do jornalista Reynaldo Jardim foi fundamental para a iniciativa, continuidade e publicação do diário. É a própria Maura que define que: (19/11/1959) “Reynaldo sugeriu-me escrever um diário. Respondi que já registro tôdas as minhas impressões. Êle gostaria de publicar o diário no jornal”[26]. Esta, aliás, é outra semelhança entre Audálio Dantas e Reynaldo jardim face a alternativa de colocar a público o texto. Em outra passagem, fica evidente que o “hospício” tinha a ver com a feitura do texto, ou pelo menos da escolha das passagens consideradas no livro, como se percebe quando ela descreve “aqui estou de nôvo nesta ‘cidade triste’, é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde”. Curiosamente, é neste mesmo trecho que ela define que: “com o que escrevo poderia mandar aos ‘que não sabem’uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém – parecem fazê-lo para elas mesmas”[27]. A noção de “endereço” - ou seja, para quem se escreve o diário - é próximo tanto para Carolina como para Maura. Para a primeira, contudo, é algo intimista que se dirigia aos outros, para a segunda é diretamente dela para o mundo, para mostrar sua solidão.
Como percebia a naturalidade da violência nas fazendas do pai, Maura transferiu a noção de violência para o cotidiano de sua vida. Violência, irritação e uma certa autoridade para o desajuste tomavam conta das atitudes da autora. Era, contudo, uma brutalidade assumida face a vida e assim até com naturalidade descrevia, por exemplo, sua iniciação sexual ainda na infância: “na fazenda tinhamos uma loja. O rapaz, empregado da loja, sempre recusava a nos dar balas, a mim e minhas irmãs menores. Uma tarde fui sozinha. Pedi-lhe. Disse que sim. Sentou-me no balcão e teve relação sexual comigo, creio ter sentido prazer e nojo. Sentindo-me molhada, julguei que houvesse feito pipi nas minhas pernas (eu devia ter cinco anos). Deu-me balas e fui para casa. Era tarde. Todos se achavam sentados na varanda. Mamãe também. Usava um vestido branco, parece-me. Ao me ver tentou pô-me no colo. Recusei-me. Achei-a limpa, inocente e bonita. Corri para a casa, deitei-me sob os lençóis sem me lavar”[28]. Conclui essa narrativa dizendo que “cheguei a ter relações sexuais com meninas de minha idade. Isto aos seis ou sete anos”. Daí para o casamento ainda adolescente e para a transferência do amor ao marido para o pai deste, perdurava a mesma naturalidade de uma violência domesticada.
As marcas dos traumas de inf6ancia, no caso de Maura foram analisados junto com médicos de maneira que depois de muitas sessões ela chegou à conclusão traumática explicitada na voz do médico que, por fim, definiu o amor da internada pelo próprio pai. Ele disse, segundo o que Maura registrou: “Seu pai, você só ama ainda a seu pai, buscando-o em todos os homens, principalmente se a protegem e você os admira” e daí a conclusão que qualquer relacionamento amoroso como alguém do sexo oposto lhe seria “como um incesto”[29].
Sexualmente, contudo, a vida das duas escritoras mineiras parece ter variado muito. Sendo que Carolina, manteve-se sempre apaixonada, gabando-se de ser namoradeira, Maura, que tão cedo fora iniciada, acabava por tratar a vida sexual com recato e não sem crítica à promiscuidade que reinava no hospital psiquiátrico em que se encontrava. Referindo-se às “mocinhas de boas famílias”, dizia que elas, na reclusão, eram obrigadas a viver com pessoas “que não tem a menor compustura” e que “não há seleção nenhuma neste hospital”[30]. Os ataques ao tratamento, aliás, são constantes e nada discretos, a tal ponto que ela diz que äs guardas deste hospital são quase todas loucas”[31]
Precoce, leitora contumaz, diz Maura que aos “doze anos, por influ6encia de uma amiga bem mais velha que eu (minha admiradora), julguei tornar-me nazista, passei a estudar alemão com uma freira luxemburguesa, Mère Esperance, dispus-me a me tornar espiã a favor do eixo - a espera de uma oportunidade para me por à disposição do ‘führe’”[32]. Isto, contudo, foi um episódio no conjunto de excentricidades que marcaram a autora, que mantinha - se freqüente leitora.
Depois de um casamento complicado de onde saiu aos quinze anos com um filho, continuou sua angustiosa busca de identidade chegando a ser leitora de “todos os filósofos que me caíram às mãos. Não possuindo ainda grande defesa, deixei-me impregnar de negativismo apenas. Pensei pela primeira vez em me matar”[33]. Tentou outras e o insucesso, segundo explica deveu-se mais à vontade de viver que de propriamente atingir a morte. Interessante o contraponto das leituras. Carolina também era uma “devoradora de livros”e, na mesma ordem, lia sem grandes critérios de escolha mas, para ela, os livros sempre tinham caráter construtivo.
Indo ao hospício pela própria vontade, Maura iniciou sua narrativa definindo-o: “Estou de nôvo aqui, e isto é -----[34] Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho? Estou no Hospício, deus. E Hospício é êste branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, enxague - e sempre outro. Hospício são as flores que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro - como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas bruscas corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o que, porque Hospício é deus”[35].
Maura escrevia sempre. Seu esforço em ser jornalista lhe valeu como terapia para o tratamento. Não foi, contudo, só o diários que a fez notável. Seus textos , como ela definira, eram feitos também em favor de algumas pessoas ou mesmo dos outros “mentais”. Isto fica claro quando ela mostra a reação geral à publicação, no Jornal de Brasil do conto “Introdução a Alda”, sendo que Auda (seu nome verdadeiro) era sua companheira de internato que a partir daquele instante passava a ser vista e se sentir um outra pessoa “ depois do meu conto”[36].
Uma das semelhanças mais intrigantes entre as duas diaristas é a simpatia pelos judeus, ainda que no caso de Maura tenha havido a superação de sua germanofilia. Para Carolina, eles seriam sérios e cultos porque perseguidos e injustiçados. Maura os contemplou através da atração por Clarice Lispector, que também teria sido louca e internada três vezes. Para Carolina, o que a aproximava dos judeus e a fazia admirar aquele povo seria o sofrimento, Maura via neles, através de Clarice, sensibilidade[37].
Se a afinidade com os judeus estava expressa, para com os negros variava. Aí o paradoxo foi contrário, pois enquanto Carolina insistia em ter sempre namorados brancos e não poucas vezes mostrava-se antipática aos nordestinos, a quem chamava pejorativamente de bahianos, Maura chegara a se apaixonara pelo Dr.A que era negro. Contando em uma passagem (dia 1/1/1960), confessava que fora conversar com dona Marina, sua amiga que estava em outro pavilhão, e diz que “contei-lhe que estou apaixonada por dr. A. Retrucou horrorizada: ‘Maura, ele é um negro’. Outro dia, ele foi muito sorridente cumprimentá-la, estendeu-lhe a mão. Ela, sorrindo, constrangida desculpou-se cruzando o braço e muito delicadamente: ‘-Desculpe-me, doutor. Minha mào não está limpa’. Ele percebeu, eu percebi, ela não cedeu, mas conservou sua elegância de maneiras. Isto me faz mal. Procuro afastar a certeza de que existe esse preconceito. As guardas se referem a ele como: ‘este crioulo’. Finjo não escutar. Se tivesse um ‘caso’ com dr. A. não sei o que seria depois. Ele parece saber disso”[38]. Carolina, ao final da vida mudou muito pois, dado seu sucesso, passou a ser espécie de modelo de movimentos negros.
O diário de Carolina se desdobrou em dois outros: Casa de alvenaria e Diário de Bitita. Maura interrompe o seu de modo brusco e sem deixar pistas de continuidade. Ainda que plenos de divergências e similitudes, o que se nota pela leitura destes dois textos é que os diários destas mulheres marginalizadas, divergiam claramente dos masculinos.
Como tiros disparados de uma mesma arma, os dois diários ferem alvos diferentes. Balas lançadas em um mesmo tempo, as palavras de Carolina atingiram um público que a leu politicamente. Maura, eivada de jargões freudianos, contava sua vida explicando-a para uma classe média nascente. Tudo justificado nas molduras de um tempo em que a moral citadina podia admitir variações maiores. Novas leituras são propostas, a partir de hoje, dos mesmos diários. Sem dúvida, porém, alguns questionamentos permaneceram atravessando tempos: historicamente, porque estes diários permanecem marginais?
Notas
[1] À exceção de Lima Barreto, até recentemente, poucos foram os autores que desviaram do padrão tido como normal na literatura brasileira. Fora dos limites canônicos do que tem sido considerado literário, entre nós poucos autores se distinguiram até a fase da contracultura.
[2] No Brasil tem persistido uma noção postiça de “Cultura Popular”, ligada ao código escrito do cordel e de manifestações que quase nunca atingem o circuito comercial. O que se pretende aqui é qualificar o “popular” como algo urbano, ligado a sociedade industrial e que circula com expressão de consumo na sociedade de massa.
[3] É interessante registrar o fato deste tipo de diário ser manifestação brasileira. Internacionalmente, os diários femininos conhecidos remetem a pessoas prezadas socialmente. Entre outros, alguns diários famosos de mulheres mais sugerem excentricidades que marginalidade. Casos como o de Katherine Mansfild que viveu obcecada com a tuberculose que a acometeu; Virginia Woolf, que transferiu para o papel sua utopia vivencial; Anais Nin, que transformou em romance, no diário, a própria vida, e, da estranha aristocracia inglesa Priscilla Scott- Ellis que registrou em diário sua luta na Guerra Civil Espanhola ao lado dos franquistas, atestam que a publicidade desses textos se deveu ao prestígio das autoras. Isto não aconteceu com as brasileiras que, pelo contrário, ficaram famosas por elas.
[4] A leitora no quarto dos fundos, in Leitura: teoria e prática, Ano 14, jun/1995,n.25, p.10.
[5] Em outros quadrantes, nomes femininos como Lílian Helman, Ema Goldman, Simone Weill eram redescobertas como prova de preconceitos machistas que não deixavam mulheres despontar como líderes políticas ou escritoras.
[6] Maura Lopes Cançado, além de jornalista, declarava-se “contista”. Carolina Maria de Jesus dizia-se primordialmente “poeta”, ainda que também escrevesse contos, teatro, romance. Sobre sua atividade enquanto poetisa, leia-se Antologia Pessoal, Ed. UFRJ, Rio de janeiro, 1996.
[7] Meu Estranho Diário, Editora Xamã, São Paulo, 1996, (org) José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine. Este texto é reprodução integral das partes do diário da autora, sem cortes ou correções. É sobre esta edição que estarei usando as citações da autora.
[8] O primeiro livro publicado de Carolina Maria de Jesus foi o Quarto de despejo: diário de uma favelada, Editora Francisco Alves, São Paulo, 1960.
[9] CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: diário I. José Álvaro Editor, Rio de janeiro, 1965, GB.
[10] Diz textualmente Carolina, na entrada de 3/11/61, que o passado no campo era puro e “que antes não conhecia o mundo que é habitado pelos vermes humanos”.
[11] Referindo-se a família do pai como metáfora da vida mineira, diz Maura: “é chata, conservadora, intransigente, como tôdas as “boas”famílias mineiras. Brrrrrrrrrrrr.” In Hospício...,op. cit. p.17.
[12] idem, p.186.
[13] Sobre o assunto, anteriormente já trabalhei, juntamente com Robert M. Levine, em livro que analisa a contextualização da escritora negra, favelada e mãe solteira in Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1994; e Life and death of Carolina Maria de Jesus. New Mexico University Press, 1995.
[14] A Editora Record, no Rio de Janeiro, em 1972, lançou outra edição do Hospício de Deus.
[15] Nota explicativa na primeira orelha do livro.
[16] A própria autora esclarece, à página 38, que Reynaldo Jardim fora com “Ferreira Gular, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores”.
[17] idem, p.93.
[18] idem, p.94.
[19] idem, p.94
[20] idem, p.51
[21] idem, p.141.
[22] Op. cit. p.19.
[23] idem, p.4.
[24] idem, p.37.
[25] idem, p.35.
[26] idem, p.85.
[27] idem, p.43.
[28] idem, p.26
[29] idem, p.149.
[30] idem, p.130.
[31] idem, p.69.
[32] idem, p.29.
[33] idem, p.32.
[34] Em várias passagens do texto impresso constam travessões que sugerem que não houve entendimento da letra.
[35] Idem, p.38.
[36] idem, p.160.
[37] idem, p.166.
[38] idem, p.180.