o indivíduo

 

 

"o criado arrebatou ao amo seu chicote e se fustigou com ele para assim poder ser amo."

kafka

 

 

incipit: “detesto a comunhão, porque é a negação da liberdade e porque não concebo a humanidade sem liberdade. não sou comunista, porque o comunismo concentra e engole, em benefício do estado, todas as forças da sociedade; porque conduz inevitavelmente à concepção da propriedade nas mãos do estado, enquanto eu proponho a abolição do estado, a extinção definitiva do princípio mesmo da autoridade e tutela, próprios do estado, o qual, com o pretexto de moralizar e civilizar os homens, conseguiu até agora somente escravizá-los, persegui-los e corrompê-los. quero que a sociedade e a propriedade coletiva ou social estejam organizadas de baixo para cima por meio da livre associação e não de cima para baixo mediante da autoridade, seja de que classe for. eis aí senhores por que eu sou coletivista e não comunista.” bakunin

 

passagem: “(...) não somente o fascismo histórico de hitler e de mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. (...) como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? (...) essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais (...): libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante; faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal; libere-se das velhas categorias do negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade; não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. é a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária; não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política; não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. o indivíduo é o produto do poder. o que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. o grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”; não caia de amores pelo poder.” michel foucault

 

*. o capitalismo enquanto “nazismo” normalizado, midiatizado, suportável, quase imperceptível {“camadas” inteiras da população não conseguem perceber ele seja por serem absolutamente excluídos, o lixo humano que rola nas cidades, fora do consumo e da produção, vivendo como ratos; participarem ativamente da manada de trabalhadores, sendo roídos a todo minuto pelo produzir, pelo consumir e por todas as formas de reprodução; serem servidores [classes médias], que se tornaram o “espírito dominante da vida social” exatamente por servirem à hegemonia com todo seu corpo, sua alma, seu tempo e todas as suas crenças, incluindo aí as várias formas de “intelectual”; ou por aqueles que detêm o poder e os meios de produção: cada um é dormente segundo sua covardia, participação ou cumplicidade}, dimensão regular do real, tornou-se o tempo, a memória, a história e a atmosfera esperada e em plena reprodução atual do programa geral da virtualidade.

*. destruir, negar, dissolver não são ações simplesmente negativas, mas negativas contra algo, contra determinada configuração social ou pessoal. essa paixão destruidora é essencialmente criadora e incessante, isto é, não cessa quando determinada situação ou estrutura muda ou desaparece, é maneira de viver, sentir, imaginar e se relacionar.

*. a questão não é “tomar o poder”: isso seria manter o poder, qualquer forma de poder, mesmo modificado, ainda seria poder. “tomar o estado” ainda é manter, proteger, ordenar, reproduzir, organizar, priorizar o estado.

*. a meta é o indivíduo, a singularidade, a unicidade: sem representantes, sem filiações, sem origens, pleno de liberdade: sem governo, sem pátria, sem autoridade, sem superiores ou inferiores: sem história, sem natureza, sem sociedade, sem estado, sem utopias.

*. o indivíduo (que se define somente enquanto singularidade, o único, autonomia, negatividade que se mantém contra tudo inclusive contra si mesmo) se opõe radicalmente à pessoa (encenação teatral para os outros e para si mesmo: máscara, performance, posição interna e externa de discurso: sociabilidade dócil, medrosa, funcional, esperada); ao eu (que existe somente em relação aos outros: é um fantasma dos outros, uma projeção doente das relações, um umbigo inflamado); ao sujeito (o que existe somente enquanto negociação, comparação e medida com o objeto, a coisa, enfim, com a mercadoria como a única forma de existência possível da exterioridade e das coisas); ao cidadão (aquele que precisa de um território, uma língua, uma história, um estado, uma família, uma crença, um governo, um sistema de palavras, imagens, fórmulas e leis para existir); o ser humano (essa universalidade reificada, biologicizada, historicizada, naturalizada e perigosa por apagar as diferenças, as negatividades radicais, as singularidades, criando um modelo metafísico ocidental que deve ser aplicado a tudo e a todos).

*. é inegável que o indivíduo, necessariamente, só existe, só é reconhecido, na relação com a “dimensão social”, com os outros que formataram ele enquanto indivíduo; que ele mesmo é um nódulo da virtualidade social sem origem, existência e explicação independente. no entanto é exatamente essa situação ontológica que exige que a individualidade seja considerada em primeiro lugar, salvaguardada em primeiro lugar, garantida em primeiro lugar, ela que vem sempre depois, por último. em primeiro lugar porque é nela e com ela que tudo acontece, tudo se sente, tudo se humilha, tudo se explora, tudo se vende, tudo se tortura, tudo se sonha, planeja, ama, odeia, cria, delira e destrói. se não for pensada em primeiro lugar um dos seus mais perigosos delírios, uma das suas hipóstases mais periculosas toma corpo e faz sofrer exatamente o indivíduo. quem sofre os campos de concentração, as prisões, as torturas, as humilhações cotidianas, a mega exploração para gerar o capital não é nenhum universal, nenhuma comunidade indistinta, mas cada indivíduo em sua miséria, dor, e limites. por isso as utopias, que sempre pensam num todo, como se a manada fosse o princípio e o fim, terminam matando milhões. o pensamento e a ação devem buscar a solução das mudanças do real na reunião entre o coletivismo, a sociedade, a práxis e a mais livre individualidade, garantir plenamente essa singularidade, pois é para ela que todo o aparato social deve existir, é nela que o social existe. uma possível “emancipação social” deve buscar exatamente “emancipar o indivíduo” e não o social pelo social, como se tudo fosse a salvação da totalidade, do leviatã, do estado, do país, do povo, do “gênero humano”: qualquer movimento que não garanta a plena liberdade do indivíduo tem sempre um compromisso obscuro com as forças que ingênua e perversamente diz lutar contra.

*. o marxiano “processo de vida real" a muito deixou de ser uma realidade em-si onde todos entram em contato para ser (um vestígio do deus invaginado que possibilita essas visões do real sem gente), um “solo originário da consciência”, “uma relação objetiva com a natureza e com outros homens”, o "intercâmbio com outros homens": tudo isso é tão imaginário, tão simbólico e ficcional quanto um sonho (o programa social, a matriz, a virtualidade), real, mas inda assim da mesma substância plástica dos sonhos (daí a revolução, seja ela qual for, ser possível e mais possível do que sempre se imaginou): o social não é uma “perspectiva positiva”, universal e naturalizada, mineralizada e vegetal, mas a substância, as projeções, as relações vivas de nós mesmos. os “conteúdos da consciência” não são simples “produtos do processo de vida real”, mas essas duas “dimensões” fazem parte de uma mesma dimensão virtual (a consciência não é uma “faculdade subjetiva” que nos permitiria “capturar objetivamente” o real). as pretensas “representações” não são somente uma “expressão consciente” das “relações e atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização política e social”, mas são intercâmbios que se autopossibilitam, se criam, recriam, se apóiam e se afastam, estando grande parte dessas dimensões na sobrevirtualidade que é o tempo, se tornando patente apenas quando se desdobra no imediato, criando os fantasmas da presença natural independente da presença do indivíduo enquanto sociedade. sem um sistema de crenças em íntima relação com a virtualidade não há ação social de produção, não o real como estrutura de aparecimento. a base das “representações”, da consciência e do real, não advém nem da “atividade da consciência” separada nem da “produção social” em-si, mas de uma articulação profunda que é a virtualidade, onde o real é se dimensiona a partir das interioridades em relação e a interioridade é um nódulo dessa virtualidade. para que haja uma modificação revolucionária é preciso mudar em conjunto, o dentro e o fora, a consciência e o real, as idéias e a vida, visando o indivíduo, não a “sociedade”.

*. não havendo esse genérico, esse universal naturalizado chamado “homem” o indivíduo se faz na “relação com outros seres”, mas não se reduz a isso. as pretensas e redutíveis “determinações da individualidade” não podem ser “dadas a partir do desenvolvimento histórico-social”, quando essa dimensão faz parte do real por fazer parte do sistema de crenças que possibilita o real funcionar precisamente contra ele. a relação entre o individuo e o “desenvolvimento social” não é de enriquecimento, mas de brutal entorpecimento e exploração. a individualidade não é genérica, social, ou “dada pela relação entre os indivíduos” enquanto individualidade, mas enquanto formatação da individualidade. levar essa condição de construção para a individualidade depois de certo ponto é manter as condições da exploração e da coisificação. o fundamento social na questão da individualidade vai até certo ponto. se não parar, dando prioridade ao indivíduo, o resultado é periculoso e termina ou na degradação da singularidade, na sua dominação em nome do todo ou nos campos de trabalho, nas purificações, nos assassinatos pela verdade, nas torturas pela manutenção da “revolução”. depois de certo momento o indivíduo não somente deve ser o fundamento de si mas a razão dos movimentos sociais, das revoluções, das resistências, das rebeliões, dos processos negativos contra qualquer “estado de coisas”.

*. a pessoa, o eu, o sujeito, o cidadão e o ser humano (produções monstruosas da práxis e seus fantasmas hipostasiados) aceitam, exigem, imploram serem governados, isto é, acossados, adestrados, advertidos, amedrontados, analisados, anotados, aprisionados, avaliados, caçados, calculados, censurados, cevados, comandados, comparados, comprados, corrigidos, decompostos, dirigidos, doutrinados, emudecidos, escravizados, espancados, espionados, esquecidos, exercitados, explicados, explorados, exterminados, extorquidos, fuzilados, guardados, igualado, iludidos, impedidos, inspecionados, interpretados, julgados, legislados, maltratados, medidos, multados, mumificados, negociado, pressionados, prostituídos, recenseados, reciclados, reformados, registrados, regulamentados, reprimidos, reprovados, roubados, sacrificados, tarifados, utilizados, vendidos: tudo em nome da pátria, da história, da natureza, das leis, de deus: como se tudo isso não fosse laboriosa e dormentemente criado, reproduzido e imposto em profunda hipóstase pela própria manada.

*. tudo que a manada acredita, segue, ensina, formata é periculoso para o indivíduo. como não sabe nem pode saber que todos os seus sistemas elementares de crenças criam e reproduzem suas estruturas imaginárias e simbólicas enquanto “o real”, como não sabem que “o real” são eles mesmos em manada, em função, em atividade conjunta e dispersa, o indivíduo, a singularidade, o nódulo de negatividade corre perigo de ser atropelado pela loucura desesperada seja da manada como um todo, como um grupo ou mesmo como um sujeito ou uma pessoa: todos profundamente periculosos.

*. todo governo, estado, organização, instituição, partido, é a expressão, em imagem menos, da própria manada. não há tirania (qualquer forma de governo, de estado, de autoridade) que não seja um espelho menor das muitas manadas dentro da manada e seus micro-poderes de apoio, contribuição, garantia, fiança, estímulo, de aplauso, de concordância, de reforço, de adesão, de torcida. todo estado, todo governo é o espectro monstruoso da manada, seu pesadelo, sua loucura, sua doença, seu horror,  seu torpor, sua alucinação materializada, a produção colossal de um parasita.

 

coda: alicerces, fluxos, delírios e estruturas da manada

1. chorume - (escorre do capitalismo) sem-terra, sem-teto, vagabundos, mendigos; tempo: fora do tempo; corpo: sem corpo/ corpo animal (reduzido); lugar: sem lugar / rua / nômade; sentimento: medo / indiferença / angústia; órgão: estômago; sonho: sobreviver; fora: do mercado, do corpo, do humano, dos poderes; invisíveis.

2. lixo industrial - velhos, doentes, loucos, delinqüentes, desempregados, detentos. sentimento: medo / raiva / indiferença; tempo: institucional; sonho: viver; órgão: intestino / fezes; corpo: patológico / improdutivo; lugar: asilos, abrigos, presídios, hospitais, sanatórios; exército industrial de reserva; fora do mercado / dejetos do mercado / garantia do mercado: já foram usados / podem ser usados / não podem ser usados / à margem; invisíveis.

3. re-produtores (escravos) - trabalhadores rurais, camponeses, artesãos, operários, empregadas domésticas, comerciários, camelôs, feirantes, prostitutas, michês; tempo: do trabalho; forças produtivas; lugar: favelas, bairros pobres; corpo: para produzir e reproduzir; consciência: operacional; no mercado e para o mercado: produzir mercadorias; corpo marcado pela produção / reprodução; sonho: trabalhar; órgão: mãos / pés.

4. servidores: advogados, médicos, professores, juízes, engenheiros, comerciantes, gerentes, enfermeiros, escritores, administradores, organizadores, fiscais, (governo / polícia / exército / igrejas / educação); filosofia: aceite, acredite; função: fazer acreditar, fazer aceitar, adestrar, administrar, destruir os perigos; protetores do sistema / gerenciadores; tempo: dos serviços; corpo: modelo; consciência: servil / institucional; servir ao mercado: produzir serviços / manutenção; profilaxia / preservativo-pelego; cura / proteção / reparo; domínio das mídias / produtores e reprodutores de ideologias; circuladores de idéias, modas e mercadorias; lugar: bairros centrais; sonho: consumir / servir, reproduzir; órgão: cabeça / corpo; donos da palavra; justificar, legitimar, completar os vazios, responder às dúvidas, restaurar os programas, destruir os vírus.

5. senhores: latifundiários, industriais, banqueiros, financistas; donos dos mercados, do poder de comprar as forças de trabalho, dos meios e propriedades, dos grandes poderes, do capital, dos donos da palavra e das leis; parasitas / minorias; fora do tempo: tempo do mercado e do ócio; corpo: gerado pelos servidores; corpo: improdutivo / modelo; lugar: definido / indefinido; órgão: pele; consciência: do mercado; sonho: permanecer / não cair.

é o conjunto das crenças, principalmente dos re-produtores e dos servidores, que faz com que dado sistema se mantenha. o resto é secundário, sendo somente parasitas ou dejetos do funcionamento. o (1), o (2) e o (3) se encontram, se interpenetram, trocam “materiais”, lugares.