O QUE VI NA ÁGUA

 

 

            Há um quadro de Frida Kahlo (O que vi na água ou O que a água me deu - 1938) onde vemos um pedaço de banheira branca, dois pés de uma mulher (mulher ou andrógino? Frida ou qualquer um? Quem? Frida: mulher: água? Seria Frida Kahlo Água?) com os dedos pintados de vermelho, sombras das pernas por baixo d’água, em cima um pedaço de parede inexpressiva e na água e diante dos olhos quadros de um universo onírico nos pedindo atenção e devaneio.

            Nesse quadro não há um passado antes, mas um passado diante dos olhos, sobre o corpo, no corpo, no líquido, nos líquidos desse corpo, à flor da pele. Nada garante que esse passado passou. Nada o faz ter deixado de ser. O corpo e uma ferida no dedão do pé nos faz pensar num passado vivo, que ainda lateja e que não se distingue do presente, os dois estão ainda sangrando em estranha comunhão. Ele está em toda parte. É por ter diante dos olhos e nos olhos esse universo de gentes e coisas e sentimentos que permite que possa ver, que possa existir a forma de existência que reconhecemos como humana. Ter diante dos olhos o presente da physis seria não ter passado nem presente. Seria ter nada diante de nada. Nem pernas, nem água, nem universo.

            Os pedaços de pés que estão fora d’água se refletem invertidos para dentro d’água criando um novo ser, um pé diferente, também um tipo estranho de ser que o possui, uma flor de dedos-pétalas vermelhos à superfície da água. Esse pé existe em dois mundos: o mundo do ar e o mundo da água. Ao mesmo tempo no mundo prismático de luz e sombra dos olhos, o diante do ser que é um antes e um dentro.

            O ar, quase metade do quadro, fecunda a “paisagem”, como no velho céu das mitologias clássicas. Os rebentos são as imagens-passado se desfiando diante dos olhos. E o fálico toma seu lugar ante o mundo feminino que o supera e transcende.

            A água é um “reflexo da mulher”, porque nada é mais mulher que a água, nada a diz mais e mais profundamente que os laços vivos das águas, nada a anuncia melhor. O corpo deve estar também sobre a água assim como as pontas dos pés que o denunciam. Mas haverá um corpo não visível olhando tudo? Não creio. Assim deseja nossa ilusão de realidade. Ali está tudo. Ali tudo se diz e o corpo imaginário se dobra sobre si mesmo e se torna imagem e símbolo. Não só esse corpo imaginário mas o mundo inteiro em volta se dobra para dentro da banheira, para dentro do presente vivo. Fora dessa banheira não há nada a não ser uma parede anódina, o caos, o sem sentido, o “existente puro” desconhecido e inacessível a todos nós.

            No entanto não há nessa água do quadro nenhum movimento, nenhum fluir, mas um fluir simbólico das imagens, dos planos, das dimensões do presente e dos vividos, tudo numa representação secundária do fluir vivo da água. A imobilidade existe somente para realçar um fluir muito mais fundamental e primitivo, que a representa e atualiza. Mas essa “água morta” também é um corpo e um tipo de corpo: o corpo do sofrimento. Ela só aparentemente e translúcida: tem cor de chumbo, de prata velha, a água barrenta dos grandes rios ainda jovens roendo barrancos, florestas e plantações. É uma água suja que nos diz muito do corpo e de todas as imagens. Ela resimboliza por conter, por sustentar toda a estrutura de símbolos. Ela atravessa tudo e se torna o verdadeiro corpo e o grande suporte: é uma água-viva prem de fluxos intertextuais, de dialogismos cruzados, de referências com múltiplas vidas: é um passado-presente que não se satisfaz em ser nem pessoal nem singular: chama para sua significação outros quadros, outros pintores, outras historias num encadeado sem fim que por fim tomará o mundo inteiro: ali temos não somente um “quadro” mas a origem do mundo.

            A temporalidade se apresenta, se dobra e se desdobra viva, se multiplica em redes simbólicas. Não há mundos separados no tempo mas só um e grande tempo vivido e vivo. É a multiplicidade polifônica desses tempos vivos que possibilitam a existência desse presente dos olhos, dessa água, dessas pernas, dessa banheira. E do próprio quadro.

            Nele a memória não é um arquivo de ferro, ordenamento de acontecimentos, de fatos, de palavras, de gentes e coisas. Ele nos diz bem mais. Explicitamente não aceita uma physis despoetizada, uma physis esquecida de que é poíésis, naturalizada e inconsciente de si. A memória é rede ficcional viva, sistema aberto e dialético de símbolos que se constróem e se transmutam em identidade, presente e realidade. Vemos ao mesmo tempo Frida, qualquer um, por dentro e por fora. As malhas e as dobras da memória estão desdobradas e desfiadas diante de nós. No entanto, não perdem sua dignidade simbólica, seu mistério, seu dar-se não dando, seu ser sem ser. É uma leitura e uma releitura vivas da vida, do momento, da sutil relação entre as dimensões do tempo, entre os foras e os dentros. É um dizer de si que não se esgota nem esgota o universo que diz. Sendo ficcionalidade social viva o mundo natural e o nosso mundo humano e sendo também ficcionalidade a nossa ocidental interioridade, a memória torna-se uma ficcionalidade especial por apresentar-se como rede simbólica duplicada, isto é, como aquilo que cria as pontes sobre as dimensões temporais da vida humana, que são, por sua vez também essencialmente simbólicas.

            No quadro é a memória a garantia das pernas, da água enquanto água e do jorro de imagens fazendo pontes entre os vividos imaginários. Aqui não existe nem o anjo benjaminiano nem os gregos que acreditavam que entravam no reino dos mortos de costas, tendo diante dos olhos o passado. Temos tudo, presente-passado, juntos, interligados à nossa frente, no corpo, no dentro e no fora, sem inanição, numa atualização e reatualização da vida e do viver. A banheira não é a vida mas o símbolo aquático que tudo inicia e tudo contém. Aqui a vida é sempre maior.

 

CADERNO DE CRIAÇÃO

ANO VI, Nº17, ABRIL - PORTO VELHO, 1999

 

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