a face da literatura
os olhos: indiferentes miram além, antes, dentro: pra nada: estão ao mesmo tempo mortos e com ódio: mortos quando vemos somente eles, mas basta olhar os olhos e sentir a boca pro ódio aparecer como presença fantasma: olhos que viram não querem mais ver: aceitam a morte em vida, o esquecimento: boca que tudo disse talvez ainda queira dizer e não pode mais: por isso odeia com esgar paralisado: talvez jamais tenha dito de verdade, tenha se poupado, ou dito sem ser ouvida: talvez ainda consiga dizer ó terra, não cubra meu sangue, não encontre meu clamor um lugar de descanso: mas até isso seria mentira: não há lugar de descanso: antes da ruína o coração não se exalta: cinzas, cinzas sobre tudo.
olhos que viveram sem viver: a vida estava sempre além. não carregam mais nenhuma ilusão. vincados, estreitam o vazio do momento, o que resta: não é pra restar. estão deitados sobre as coisas. pousados. como aves mortas, negras, secas, esturricadas pelo sol do tempo, vergadas, de lado. sem forças. dizem “não é mais preciso”, “não quero mais”, “não desejo”, “não sou”: “me deixem”. ao mesmo tempo arrancam do resto da face um rancor monstruoso, um ódio incontido, loucura serena e perversa: não sou louco. um desvairio cheio de razão, uma razão cheia de olhos que não suporta mais os olhos, esses olhos que teimam em olhar essa face, esses olhos, esses vincos.
o estômago está queimando, as pernas doendo como se nelas tivessem amarrados muitos quilos de chumbo. os pés estão inchados. as unhas dos pés estão grandes, pesadas, rachadas, podres. diferente e bem diferente dessas orelhas que querem ainda voar. só as orelhas ainda são inocentes. as orelhas não sabem de mim. não sabe de nós. as orelhas nunca sabem de nada.
esse rosto sabe que tudo está na vida, no enquanto se vive. ligado ao corpo, à respiração, ao prazer, a pele, pele crespa, encrespada, a posição entre os amigos – jamais ao nome (essa coisa fria e monstruosa que dizem se parecer com a gente): esse pode até continuar, mas a carne, o sonho, a vida, a alma, o sentido – se jogam no nada, somem no caos, despencam gritando seu horror – como se jamais houvessem existido: nada existe, nada existirá: eu não existo nem devo existir: resistir cansa demais e sempre pra nada.
esse rosto conhece a derrota: sabe que depois é balela e ilusão: ilusão sem graça: continuar a desgraça: agora é somente ódio: esse ódio que já se foi e nunca passará: o amor passa: o desejo passa: o sonho passa: a vida passa: mas o ódio não passa: passará somente pro futuro marcado desse rosto no papel que já não é esse rosto: tudo se perdeu: o que restar, se restar, será somente imaginação dos outros: uma vida, um nome, um corpo que jamais foram dele, jamais foram meus, mas dos outros, como carcaça de bicho morto arrastado por cães e urubus: os cemitérios: não ele: já não desejo o que não acontecerá: ele sou isso: isso que resta como espetáculo no papel pros olhos: só resta o espetáculo nos papeis: nada mais ridículo: e virão os carniceiros como se fossem inocentes somente porque já é somente morte o corpo desses olhos.
isso não é rosto: máscara sobre o nada de uma vida destroçada. não há boca: nem fome: pela boca só esquecimento entra ou sai: não há olhos: tudo que foi visto agora se desmancha: nada a ser visto: a cabeça pende antes da queda no esquecimento, no não viver, no sonhar pra nada: sem potência os olhos recusam ver: não deixam mais que neles se veja mais nada: não quero: moles, moles demais: estão mortos: ali dentro nada se move: nada ali dentro ou aqui fora pra eles: nem nós.
nada disso que sou eu sou eu mesmo: há desvios demais: somente desvios: a força se esgota e não se realiza. tudo é dos outros. nem essa cor, nem esses olhos, nem essas palavras. nada ao redor é meu. nem filhos. nenhuma mulher. nem casa. nenhum livro. nada. tudo sempre foi dos outros. sou somente um espectro ridículo. acreditei que existia. que muitas coisas valiam a pena. nada vale a pena. é tudo tão pequeno que nada vale a pena. nem esse horror imenso vale nada. e o tempo que não passa.
onde a fúria? onde o desejo? onde o frescor dos sonhos? onde a infância? onde a palavra em fogo? onde o corpo? as conversas, o gosto de comida caseira e quente, os abraços, o hálito da vida, o cheiro dos jornais, os ruídos da cidade? O latidos dos cães e o ronronar dos gatos? onde? onde estou?
ninguém conversa com ninguém. ilusão estúpida. as palavras são impotentes. não é nenhuma força que ilumine. elas só confundem, desorientam, exploram e desequilibram: tagarelice e eco: som sobre som, ilusão sobre ilusão, tinta sobre tinta, luz sobre luz: tudo mentira e pó. a vida é maior e não é nada. dizer é confundir. nunca dizemos o que somos ou o que são as coisas e os outros. nunca se conhece nada. somos insetos perdidos numa noite sem fim. maldição é pensar que é diferente.
isso aqui é um matadouro: não pode ser outra coisa. a vida é um matadouro. nada sai vivo ou inteiro. depois de tudo um buraco vazio e um monte de pó. somente um buraco cheio de cinzas. não voltamos nunca: de um buraco ao outro o silêncio, a mentira e a dor.
essa manada escondida na sombra como gado no escuro sob as árvores. silenciosa. cega. entorpecida esperando nada. essa manada sou eu: eles venceram, eles sabem que venceram: eu sou a prova da derrota, da traição, da vida perdida, do nada ser ou realizar. nunca me senti tão só e tão fraco. desejo somente não acordar. simplesmente não amanhecer. mas a quem pedir se não há ninguém?
tédio e descrença. essa roupa não é minha, nem pode ser. esses cabelos como ninho de algum demônio não são meus, nem podem ser. esses cabelos dizem porque não consegui ser nada. essa cor que não é nada pra todos os parasitas significa mais do que deveria: sou eu: sou somente essa fina fatia de pele escura. somos assim: finas fatias de nada. por isso morremos e por isso matamos. por isso nos iludimos. quanta tolice, quanta burrice, quanta força estúpida.
quem são esses ao redor? quem é esse que olha pra mim? pergunto e sei todas as respostas. serei nu como essa parede nua. mineral. mas estou cansado. cansado demais. acreditei demais. agora quero silêncio. não mais que o silêncio.