A CRIAÇÃO DE UM MUNDO

 

 

DEYVESSON ISRAEL GUSMÃO

Centro de Hermenêutica do Presente - UFRO

 

            Este artigo nasce a partir de um dos pontos da interpretação que tenho feito das narrativas de Soldados da Borracha. O trabalho de História Oral desenvolvido com estes homens parte do projeto Nordestinos na Amazônia: A experiência de dois mundos, no qual tenho trabalhado nos últimos dezoito meses como bolsista de iniciação científica, mais especificamente com o plano de trabalho História Oral com Soldados da Borracha: a experiência na Amazônia.

            A leitura das narrativas, que foram constituídas a partir de uma metodologia específica de História Oral, tem sido feita com base na obra A Câmara Clara, de Roland Barthes (1984), onde o autor define a interpretação como uma projeção criada pelo intérprete a partir de um detalhe – o punctum. A idéia de detalhe é a imagem significativa escolhida nos textos dos colaboradores, imagens essas que estamos relacionando e pondo em diálogo com Mircea Eliade, onde buscamos multiplicar sentidos a partir do ponto comum encontrado nas narrativas, a partir do qual poderemos tratar das questões dos mitos e do imaginário amazônico e qual a participação do nordestino na constituição desse imaginário.

            Os Soldados da Borracha foram assim intitulados por terem vindo para a Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial a fim de trabalharem na produção de borracha silvestre, que era fornecida aos países aliados. Houve então um fluxo migratório induzido por uma política de Estado, fluxo esse que trouxe mais de cinquenta mil homens para a região amazônica.

            A relação desses homens com a Amazônia dá-se, inicialmente, de maneira conflituosa. Esses homens interiorizaram uma vivência “natural” do mundo nordestino e quando chegaram na Amazônia estabeleceram uma relação típica de estranhamento, onde as imagens da natureza nordestina entram em conflito com as constatações das formas da natureza amazônica.

            Em virtude da inexperiência na mata o soldado da borracha foi inicialmente estereotipado como o “brabo”, pois não sabia a forma com deveria trabalhar, sendo também denominado de “arigó”, por ser migrante. Mais tarde essa denominação permanece, contudo aqueles que já se tornaram experientes na lida com a seringa e entendidos da linguagem cabocla passam a ser “mansos” e não mais “brabos”. No geral, independentemente de serem “mansos” ou “brabos” esses homens e suas famílias – apesar de a maioria dos soldados da borracha terem chegado solteiros à região amazônica – eram caracterizados como “cearenses”, não importando de que Estado da federação vieram (Benchimol, 1999:35). Dessa forma o caboclo amazônico caracteriza grosseira e indiscriminadamente esses homens como estranhos ao ninho amazônico e acabam apagando suas diferenças individuais, sendo o grupo caracterizado por semelhanças superficiais.

            O espaço “natural” da Amazônia é reconstruído e ressignificado por estes homens a partir do estranhamento e das relações constituídas dentro do mundo amazônico. E também a partir do estranhamento o homem nordestino vai criar um novo mundo, que não será nem aquele que ele deixou no Nordeste e nem muito menos o mundo amorfo que ele encontrou na Amazônia.

            A organização do seringal assenta-se no trabalhador que vive na mata, distante do convívio com os outros. A mata para o Soldado da Borracha possui vida e vontade própria e apresenta-se, pela sua estrutura simbólica, como filha e fruto da comunhão da água com terra. As Águas, que trazem em seu curso os sedimentos responsáveis pela inseminação e fertilização da Terra – elemento símbolo da fecundidade – aparecem não só como fonte de origem, mas também como elemento mantenedor da vida na mata (Eliade, 1992: 110). As terras amazônicas, acolhedoras do homem nordestino, são responsáveis por parir a mata, território desconhecido e “desocupado” que aparece, ao olhar do migrante, como um outro mundo e, por ser um outro mundo/um mundo de outro, apresenta-se sem forma, na modalidade de Caos (Eliade, 1992: 34).

            A partir da ação desses homens sobre essa massa verde caótica que se espalha sobre a Terra, inicia-se um processo de organização, de cosmicização do Caos. O homem passa a agir sobre o espaço caótico, amorfo, a fim de transformá-lo simbolicamente em Cosmos, em Mundo, em “seu-mundo”, em seu lugar, ou seja, em seu espaço conhecido (Eliade, 1992: 32).

            A transformação do Caos em Cosmos é criação. Essa criação se dá através da ritualização das atividades exercidas pelo soldado da borracha. A repetição do trabalho diário – sair de manhã cedo ou até mesmo de madrugada, cortar a seringueira, colher o látex e defumá-lo para obter as pélas de borracha – torna-se um movimento ritual que vai estruturar e organizar o espaço da mata, colocar nela os referenciais de que o Soldado da Borracha precisa para dela tirar seu sustento. Dessa maneira o que se dá é um processo de consagração desse espaço, processo que, segundo Eliade (1992: 36), implica numa escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Assim a mata necessita de quem a consagrou e a sociabilizou, de quem a criou, tanto quanto o seu criador necessita dela para poder ter um referencial para sua existência: ninguém existe sem um lugar, da mesma maneira que é impossível um lugar sem uma presença. A presença é que vai criar códigos que vão dar significados ao espaço que, por sua vez, surge como concretização do modo de agir de uma sociedade, ou seja, como projeção de uma práxis (Caldas, 1997: 9).

            Esse processo de sociabilização, de formação e criação do existente, de criação de um mundo, é responsável por tornar o “brabo” em um “manso”, ou seja, fazer do homem nordestino recém chegado e inapto ao serviço de extração do látex – além de desconhecedor de um espaço físico complexo como o da floresta – um homem apto ao trabalho com a seringueira e pronto para o convívio social com a mata.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARTHES, Roland. A CÂMARA CLARA. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

BENCHIMOL, Samuel. OS “CEARENSES” – NORDESTINOS NA AMAZÔNIA. In AMAZÔNIA – FORMAÇÃO SOCIAL E CULTURAL. Valer, Manaus, 1999.

CALDAS, Alberto Lins. INTERPRETAÇÃO E REALIDADE. Caderno de Criação, UFRO/Dep. de História/CEI, n.º 13, ano IV, Porto Velho, setembro, 1997.

ELIADE, Mircea. O SAGRADO E O PROFANO. Martins Fontes, São Paulo, 1992.

__________. MITO E REALIDADE. Perspectivas, col. Debates/52, São Paulo, 2002.